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“Já falamos, há muito tempo, por telefone. Na ocasião, eu lhe disse que passei a gostar de matemática devido ao seu jeito de ensinar. Você foi a minha melhor professora nessa matéria. Obrigado por isso. Estou dando aulas de matemática há 26 anos por "culpa" sua, viu?... rsrsrs Boa noite!”
“Que bom que fiz alguma coisa produtiva no decorrer da minha caminhada profissional e alguém se espelhou em mim. Fico feliz em saber que alguém foi grato ao meu trabalho. Obrigada, Filipe. Quando for a Guiricema, passando em Volta Redonda, para pra uma visita e tomar um café comigo. Além de ter sido sua professora, acho que somos primos, pois também sou Moura. Fique à vontade. Abraços.”
“Obrigado pelo convite, eterna professora! Somos primos, sim. Meu pai já me dizia isso naquele tempo em que fui seu aluno. Abraços!”
Esse diálogo, pelo Messenger, foi em 30 de março de 2018. Eu estava fuçando no feice e encontrei a dona Iolanda por lá. Após me certificar de que seria ela, trocamos essas mensagens.
Antes, ainda no início da minha docência, telefonei para a dona Iolanda. Naquela oportunidade eu lhe confessei meu carinho e admiração e disse que sempre tentava me inspirar no seu trabalho. Ela ficou feliz e me orientou a fazer concurso para efetivação a fim de adquirir estabilidade, desejando-me sorte na carreira.
Esse “caso de amor” com a dona Iolanda começou em fevereiro de 1976, quando entrei na quinta série do antigo ‘curso ginasial’. Terminado o ‘curso primário’, fiquei numa “quarentena” de quatro longos anos fora da escola. Eu queria muito voltar a estudar, mas eram muitas as dificuldades financeiras e a matemática também me afligia. Eu tremia só de pensar em expressões numéricas, e fiquei ainda mais espantado quando me disseram que teria de lidar com as ‘temíveis’ equações. A coisa ia entortar pra mim, mas fui em frente.
No primeiro dia, uma segunda-feira, quem veio pra dar a primeira aula? Ela, a dona Iolanda! Grudei os olhos na professora. Eu não piscava. Tudo o que ela dizia eu anotava e não perdia nada. Assim que a dona Iolanda entrou e se apresentou, foi à lousa e pôs o título do livro que usaríamos. Ela disse que o livro talvez não fosse barato, mas que poderíamos comprar um usado mesmo, desde que as resoluções fossem apagadas.
Chegando em casa, falei com meu pai, e ele, através de alguns contatos, descobriu que alguém tinha o tal livro. Saímos numa tarde, quase ao anoitecer, e fomos à casa da Aurinha, filha de um velho conhecido dele. Ela já estava na sexta série e queria vender esse livro. Chegando lá, papai conversou com o amigo e a menina trouxe o livro pra gente dar uma olhada. Combinado o preço, meu pai pagou e saímos dali muito felizes.
Em casa, meu velho pegou o livro e o folheou. Era uma obra da coleção ‘Matemática Moderna’, de autoria de Osvaldo Sangiorge. O livro estava numa situação bem deplorável, que nem capa tinha mais. Após manuseá-lo, papai me devolveu e disse: “Tá tolo, sô! Essa tal ‘matemática moderna’ eu não entendo, não. Na minha época, o livro de matemática trazia números; agora está cheio de letras... Essa coisa de ‘achar o valor de xis’ me confunde todo!” Embora decepcionado, ele não disfarçava a alegria de ver seu filho entrar para o ginásio.
A dona Iolanda foi minha professora de matemática na quinta, sexta e sétima-série; na oitava, foi a dona Maria Lígia – a quem devo uma crônica. Contudo, foi a dona Iolanda que me afastou o medo da matemática e ainda me fez tomar gosto por essa disciplina. Com essa professora, não aprendia quem não quisesse. Ela era formidável.
Dias atrás, dando uma zapeada no feice, fiquei paralisado ao saber que a professora Iolanda nos deixou. Ela partiu no dia 28 de maio deste ano. Eu sonhava revê-la. Mas agora... nunca mais!
À querida dona Iolanda, que estaria aniversariando hoje, deixo aqui o meu ‘muito obrigado’.
FILIPE
Essa foto eu tirei da varanda de minha casa um minuto antes de abrir o computador para escrever esta crônica.
O sábado, que sempre foi para mim um dia arrebatador, hoje está assim, tristonho, como se vê na imagem. Nas manhãs sabatinas, costumo fazer pequenos vídeos para alguns amigos e parentes, aqueles que me são mais próximos, mas hoje não consegui essa alegria matutina.
Hoje, como sempre, levantei-me bem antes de o dia clarear para as minhas preces, depois veio o chimarrão, as leituras e as músicas.
Este sábado, porém, me veio amargo. As chuvas estão escassas e o dia amanheceu nublado. Seria um bom sinal, né?... Só que não. Acho que essa é a primeira vez que experimento a sensação horrível de um dia nublado e sem nuvens. É algo semelhante a uma plantinha linda, viçosa, mas, chegando bem pertinho dela, percebe-se que é de plástico – a coisa mais sem graça de se ver –, mas com um tempero bem mais trágico.
Justamente no momento em que digito este texto, Tonico e Tinoco cantam “Pingo d’água” na Rádio Cultura de São Paulo. Quem conhece essa música sabe o que estou sentindo e nada poderia ser mais profético do que isso.
Toda essa formação atmosférica adversa, esse clima hostil, tem origem no desmatamento e nas queimadas, principalmente na Amazônia. A devastação naquela região é apocalíptica, sem citar o Pantanal onde o inferno não é menos dantesco. Os denominados ‘rios voadores’, que partem do Norte e trazem chuvas para o Sul, agora viraram ‘rios de fumaça e de fuligem’.
Moro num lugar privilegiado onde tem ar puro com muito verde, mas é grande o esforço de gente escrota para acabar com essa exuberância. Volta e meia uma árvore é cortada e sua galhada é posta na calçada. A prefeitura, sempre “tão generosa”, estimula o serviço e desloca seus caminhões e homens para remover os ‘restos mortais’ daquelas inocentes criaturas. É dessa forma que o meu bairro vai “se livrando” de goiabeiras, amoreiras, mangueiras e demais árvores frutíferas tão necessárias para nós e a nossa fauna, que agora definha em decorrência dessa insensatez.
Ah se eu tivesse poder, mas teria de ter uma força salomônica, eu deportaria todos os predadores do meio ambiente para... sei lá. Gaza?! Sim, Gaza seria um bom lugar pra esses algozes da Natureza. Toda essa gente que anseia por ver a terra devastada, estéril, calcinada deveria trocar de lugar com o sofrido povo palestino. Que fiquem lá somente os terroristas para receberem os malfeitores daqui. Eles que se entendam com seus pares e não lhes faltarão agudas emoções.
FILIPE
Olha a folga! E eu pensando que tivesse feito esse banquinho pra mim... Que nada! Depois que essas duas figuras chegaram, nunca mais pude sentar ali pra ‘pegar a fresca’ ao entardecer, como eu sempre costumava fazer.
Você que me lê não imagina como é gostoso sentar nesse banco. Ele é feio? É, mas eu não acho. Malfeito? Talvez, mas eu não acho. Esse banco foi feito com madeiras já “aposentadas”, algumas apanhadas na rua. Aliás, esse tem sido meu hobby. Sempre que saio com os cães, não esses pirralhos aí da foto, mas os outros dois, meus velhos companheiros de caminhada, fico bisbilhotando as construções e os rejeitos em seu entorno. A minha alegria é maior quando vejo uma caçamba de sucata. Ali costumo garimpar algumas preciosidades como madeiras descartadas e que iriam para o lixão. Com elas fiz prateleiras, portão, uma espécie de mesa de carpinteiro e até esse banquinho. Também já corri algum risco de ser preso por furto, e risco real! Explico.
O vizinho de baixo estava de mudança. Fazia tempos que a sua família não dava as caras por aqui e muita coisa foi retirada da casa e levada para outro endereço, restando algo que foi deixado na calçada. Aqui preciso explicar a existência de um código de conduta que vale na cidade, nos subúrbios e até nos arrabaldes: “Tudo o que se deixa na calçada é descarte; quem quiser, pode pegar”. E na calçada do vizinho havia uma coisa que me inflou a cobiça: um estrado de cama com as madeiras muito certinhas e lisinhas, do jeito que eu precisava. Todos os dias eu esticava o olho praquelas bandas e pensava: hoje eu pego aquele estrado.
Numa tarde, como de costume, peguei a guia e chamei os cães para a caminhada. Ao passar diante daquela casa, resolvi me aproximar e ver o que mais me interessava além do estrado. Havia dois pedaços de caibro que me seriam de bom uso. Peguei-os e os encostei no meu muro, mas do lado de fora, para a rua, e segui com os cães. Pensei: na volta eu pego o estrado também. Mas o quê?! Quando voltei, o carro do vizinho estava lá, bem ao lado dos “trem”. Entrei mal disfarçando minha frustração, mas aliviado por ter escapado de um provável flagrante. Deixei os dois pauzinhos lá, pensando que eles pudessem ser recuperados pelo homem, mas não foram. No dia seguinte decidi guardar os “meus” pauzinhos, mas o estrado eu não peguei. É preciso ser honesto, né?... Pois fui.
Passados mais uns dois dias, um caminhão estacionou ali e levou tudo. Era mudança mesmo, concluí. Só que não. Outros dois dias se passaram e a família já estava de volta. Ninguém havia mudado e eu querendo surrupiar as coisas deles, pode isso?... Pensei em pôr de volta os dois pauzinhos, mas... Como me serão úteis e ninguém se deu conta deles, fiquei quieto.
Sobre o banco da foto lá em cima, estou proibido de usar. Basta eu me sentar ali, que sou expulso pelo Pitoko. Se bem que eu queria fazer outro banquinho, mas o vizinho não colabora... Ô vida!
FILIPE
Não, eu não queria estar em destaque nessa foto, mas não tive escolha. Isso porque nessa imagem estou pegando na mão da professora que me ensinou as primeiras letras, e eu teria de fazer esse registro aqui. Foi a dona Aída quem me ensinou a pegar o lápis para que eu pudesse fazer meus primeiros rabiscos, desenhando as vogais, algumas consoantes e o meu nome. Foi ela também quem me conduziu ao universo escolar, do qual nunca mais me desvencilhei.
Durante a breve visita àquela senhora, por quem tenho um sentimento filial, a minha memória foi desnovelando cenas de um passado muito distante. Naqueles poucos minutos, pude rever a jovem professora entrando na sala de aula com seus livros, seu sorriso e seu perfume. Depois de um animado boa-tarde, ela escrevia algo no quadro-negro e, em seguida, visitava cada aluno, orientando-os carinhosamente nas lições.
A nossa escola funcionava num velho prédio que meu avô paterno ajudou a construir. A minha sala de aula era um pequeno cômodo no porão, que todos chamavam de “galinheiro” porque ali teria sido dormitório, maternidade e berçário de galinhas. Embora precária, aquela sala de aula tinha o básico: um quadro-negro, que era uma placa de compensado pintada de preto apoiada em dois cavaletes; bancos de madeira rústicos e compridos, acompanhados de mesinhas estreitas com o mesmo comprimento do banco, cabendo em cada “carteira” uns cinco ou seis alunos; mais coisas não tinha, também delas não houve carecimento. Havia nos fundos o pátio – um grande terreiro com algumas árvores frutíferas, dentre elas um abacateiro e um pé de coração-da-índia. Bem ao lado da nossa sala de aula, ficava a ‘casinha’, que era uma privada sem lavatório nem papel higiênico, para onde os alunos acorriam a fim de resolver suas urgências.
Não tínhamos cartilha para as ‘primeiras letras’ nem outro material didático. As crianças usavam apenas lápis, borracha e um caderninho brochura de 24, 36, 48 ou 60 folhas. A grossura do caderno variava conforme a classe social do aluno. Eu mesmo não me lembro de ter usado um caderno de 60 folhas – um luxo para os mais abastados.
O tema aqui não deveria ser essas reminiscências, mas a dona Aída a quem dedico esta crônica.
Pois então, era uma manhã de sábado, fria e de sol morno, quando apertei a campainha da casa da professora. O meu amigo taxista, sabendo que eu não demoraria, preferiu esperar no carro. Sem que houvesse a necessidade de apertar a campainha novamente, fui calorosamente recebido pela filha Adaíse e sua matilha. Preocupada, ela me perguntou se eu tinha medo dos cães, afirmando serem eles mansinhos, mas, se preciso, ela daria um jeito. Afastei essa preocupação, dizendo que amo bichinhos e me sinto amado por eles também – desde que não sejam ferozes, é claro. Essa última parte eu não disse, mas nem precisava.
Entramos e me reencontrei com a amada professora. Conversamos um pouco e ela me pareceu muito contente com a visita. Adaíse me contou de sua rotina, dos cuidados com a mãe e da alegria em poder lhe oferecer dignidade nessa fase da vida. Tendo comigo uma regra de que ‘a acamados a visita não deve passar de dez minutos’, fizemos uma prece e me despedi, deixando aquela casa com a leveza de quem sai de um templo após profunda contemplação.
FILIPE
Numa manhã fria deste inverno, era sábado, desci do táxi, apertei a campainha e resolvi chamar também, que era pra garantir que eu estava ali. Tenho uma regra não escrita: não se deve apertar a campainha mais de uma vez. Se for algo urgente, aperte a segunda vez; caso não seja atendido, dê sossego, não seja inconveniente, caia fora!
Dessa vez, nem precisei chamar novamente, porque a bondosa senhora já veio descendo lentamente a escada. Como boa mineira que é, chegou cabreira e, ao me reconhecer, um sorriso desanuviou-lhe o semblante. Eu fiquei orgulhoso de ser reconhecido pela dona Fia, abobado mesmo, e explico o porquê, mas ao final da crônica.
A dona Fia abriu o portão e me convidou pra entrar. Aceitei, é claro, mas com a ressalva de que seria por apenas uns minutinhos. Fomos subindo devagarinho enquanto ela falava do frio e da nova rotina, agora sem o companheiro de vida por mais de setenta anos.
Primo de meu avô materno, seu esposo era um homem de hábitos finos, poucas palavras e grande sabença. Na última vez que os visitei, embora adoentado, ele estava muito alegre e receptivo. Engatamos uma prosa sobre o antigo casarão que pertenceu à família, mas fomos interrompidos pela campainha. Pensando que fosse algo rápido, pediu licença pra atender, mas a visita pôs fim à nossa conversa, me deixando bastante frustrado.
De volta à dona Fia. Terminado de subir a longa escada, fomos direto pra cozinha. Mineiros são assim: recebem pessoas próximas na cozinha; a sala é mais solene e serve para alguém sem a intimidade da casa, como aquela visita já citada acima. Diante de mim havia uma mesa farta com tudo de bom: café, leite, chá, pão, bolo, queijo etc.
“Tome um café...” “Obrigado. Não tomo café.” “Então tome um chá... Tem pão, bolo... Experimente esse queijo.” Comi um pedaço de queijo e ataquei o bolo, mas que bolo! “Quem fez o bolo?” “Eu!”. Comi outro pedaço, mas de guloso, porque eu estava de bucho cheio. Assim que “apeei” do ônibus na rodoviária, fui a uma lanchonete e peguei um achocolatado e um baita pedaço de bolo de fubá.
A dona Fia queria que eu sentasse e esperasse pelos filhos, mas eu tinha pressa e um táxi me esperando. Ela lamentou: “Que pena... Você poderia ficar para o almoço. Quando voltar aqui, venha sem pressa, venha almoçar e se quiser ficar, há muitos quartos nesta casa. Moro sozinha, mas uma filha fica comigo à noite. Ela está viajando, e de tardinha já deve chegar. Eu nunca estou só. Meus filhos são muito bons pra mim, volta e meia estão aqui. Agora mesmo saiu um. Acho que você até encontrou com ele por aí, não?... Ele acabou de sair e você chegou.” “Não, não vi e acho que também não reconheço. Faz tempos que não vejo seus filhos.”
Conversa vai, conversa vem, o tempo foi passando e o amigo taxista lá embaixo me esperando. Mas deu tempo pra falar de muita coisa naqueles dez ou quinze minutos. “Seu nome é Eva, né?... Por que Fia?” “Ah, quando menina, meus irmãos começaram a me chamar de Vininha. Não gostei. Depois começaram com Vinica. Não gostei também. Então papai falou pra me chamar de Fia. Eu achei que era bubiça ficar reclamando e aceitei.”
A dona Fia é dessas mulheres maravilhosas, que raramente se vê por aí. Ela parece ter saído das páginas de um livro de histórias infantis, daqueles lidos pela nossa primeira professora. Ela é uma senhora com quem a gente se senta e conversa por horas sem se cansar. Para mim ela é como uma tia muito querida – e eu tenho tias muito queridas!
Ah, a dona Fia é muito especial e sempre tive vontade de lhe pedir a bênção. Bença, dona Fia!
FILIPE
“Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro!” Essa seria, na visão de um poeta, a missão de todos ao longo da vida. De minha parte, já plantei algumas árvores, tive uma filha, mas nunca escrevi livro. Por outro lado, meu pai teve muitos filhos, plantou muitas árvores e escreveu três livros. Dessa forma, estou em dívida com a vida; já meu pai cumpriu com folga a missão.
Deixando de lado o poeta e seus anseios, quero falar do ipê cuja foto abre esta crônica. Essa árvore foi plantada no sítio da família onde mora minha irmã mais velha quando completei ‘trinta anos’. Meu pai escolheu o lugar e fez a cova; eu apenas ajustei a plantinha no buraco e apertei a terra ao redor com cuidado para não lhe ferir as incipientes raízes.
Tempos antes, quando fiz dezoito anos, meu pai me pediu para plantar uma árvore. Ele me deu a muda de um abacateiro e me acompanhou ao quintal de sua casa, lá na Montanha Santa, onde o plantamos. Infelizmente, aquele pé de abacate não vingou.
A história do aguerrido ipê começou no início de dezembro de 1991, quando eu terminava a licenciatura na Fundação Santo André. Ansioso com o resultado das provas finais, cheguei apreensivo no dia marcado para a publicação a fim de ver a minha situação. Havia três possibilidades para mim: estaria aprovado, iria para exame ou estaria reprovado. Para minha alegria, fui aprovado em todas as disciplinas. De um aluno mediano como eu, é claro que não se esperaria brilho nas notas. A mim, pouco importava certos louros tão sonhados por tantos. Desejando apenas seguir a vida sem amarras nem pendências escolares, uma clareira se abria para mim naquele dia. Talvez o jovem leitor não saiba, mas houve tempos em que muitos alunos abandonavam a faculdade em razão das ‘dependências’ que tanto nos fustigavam.
Pois naquela manhã ensolarada de fim de primavera, eu tinha razões para estar muito feliz e não sabia se cantava, se assobiava ou saltitava. Eu não cabia em mim de tanta satisfação. Saindo do prédio da Fundação, descendo uma ladeira entre canteiros de folhagens sob grandes árvores floridas, vi uns homens cuidando daquele jardim. Sem que eu tenha planejado qualquer coisa, me veio de súbito um desejo e resolvi pedir uma plantinha como recordação daquele campus. Poderia ser mudinha de árvore, flor, folhagem, cipó ou até capim. Eu queria uma lembrança da minha faculdade. Então, um daqueles senhores me pediu pra esperar e saiu. Passados uns minutos, ele retornou com uma pequena muda de ipê, que só anos depois soubemos tratar-se de ipê-rosa.
Aquela que fora a menor das plantinhas no quintal da ‘irmã mais velha’, cresceu em silêncio e sem pressa, tornando-se árvore frondosa. Seus galhos folhosos e floridos alcançam as alturas, bem acima da espessa vegetação ao redor, donde sorvem os primeiros raios de sol da manhã.
Naquele derradeiro chão de meus pais, o ipê-rosa guarda consigo a memória de muitos acontecimentos: alegres chegadas, ruidosos encontros, animados festejos e tristes despedidas.
FILIPE
Há exatos dois sábados a minha rotina mudou radicalmente. Para melhor? Pelo jeito... Não sei.
Essas duas pestinhas são de uma turminha de seis irmãos: dois foram para uma amiga, um pra uma conhecida, um ficou com a dona da prole e esse casal veio parar aqui, na minha casa. Claro que os dois não vieram sozinhos, pegando ônibus ou táxi ou a pé; nós os trouxemos de carro, bem acomodados no banco de trás, comigo entre eles.
O nome deles: Maneca e Pitoco. ‘Maneca’ porque eu quis homenagear o grande Pepe Mujica, que teve uma cadelinha de nome Manuela. ‘Pitoco’ porque eu quis homenagear a minha filha, que na infância teve um bichinho de pelúcia com esse nome.
A chegada desses pirralhos não foi muito tranquila. Pituca e Tiziu, meus velhos companheiros, não aceitaram os parças e foi uma luta pra chegar a um acordo com eles. Os dois veteranos urravam furiosos, tentando arrombar o portão, enquanto os pequenos tremiam e choravam de pavor. Com o Pitoco ao colo, subi a escada e tentei negociar com as feras. Enquanto o Tiziu brandia os caninos, a Pituca babava sedenta. Um Pitoco aterrorizado esperneava nos meus braços, implorando pra eu desistir. Mas eu precisava forçar aquele contato, até porque não havia a opção de retorno. A custo, depois de horas, as coisas se ajeitaram um pouco.
Agora os “meninos’ parecem ter adotado a Pituca como mãe e não a deixam em paz. Onde quer que ela esteja ou aonde ela vá, eles, se não estiverem ocupados, estão pulando nela, impedindo-a de andar etc. Bem feito pra Pituca, que é uma matrona muito chata e agora tem uma boa sarna pra coçar! Por outro lado, o Tiziu já aprontou das suas. Certa vez, avançou sobre a Maneca e a mordeu no ‘rosto’. Depois de ser repreendido, tomou rumo, aquietou-se e não buliu mais com as “crianças”.
A foto que ilustra esta crônica foi feita à tardinha do dia em que chegaram, após longas horas de batalha até a pacificação. Naquele momento, já apaziguados, os novos inquilinos exploravam e contemplavam o ambiente. Os dias seguintes foram de intensa alegria, mas apenas deles, porque a minha paz “foi pro saco”.
Gente, essas pestes destroem tudo, mas tudo mesmo, e estão dilapidando meu patrimônio! Tapetes, ferramentas, chinelos... Tudo que eles encontram é reduzido a nada. Neste exato momento em que escrevo, ouço um barulho no quintal. Já fui conferir e os vi fazendo ‘cabo de guerra’ com um tapete.
Ah, eu tinha uma roseira!... Comprei uma muda de rosa, que me custou sofridos ‘onze reais’, com uma flor vermelha em botão. Decidi plantá-la num lugar “inacessível” a eles. Se bem que a “patroa” alertou: cuidado com os cães! E não é que os traquinas descobriram minha roseira e a comeram inteira?... Da planta só restou um toco. Será que o toco vai brotar? E se brotar, será que eles vão deixar crescer e florir?! Sei não... Acho que com esses dois pirralhos nunca mais terei paz. Nem roseira. Terei apenas a companhia deles, e isso basta.
FILIPE
Quando meu pai partiu, logo no dia seguinte ao sepultamento, o primogênito reuniu a irmandade para alguns encaminhamentos. Naquela ocasião, sugeri que fizéssemos um encontro anual e assim ficou acertado. E então, aquele pequeno e breve encontro dos Moura Lima marcou o início de um evento que se repete a cada ano. Após a primeira reunião, que se deu em abril de 2022, veio a segunda em abril do ano passado; a terceira aconteceu nos dois primeiros dias de junho deste ano – festivo, com uma comida bem mineira, muita conversa, sonoras risadas, doces e bolo. Ah, e teve até parabéns para o bolo!
Os onze estivemos reunidos por várias horas na noite do sábado; após o almoço no domingo, alguns já buscaram o caminho de casa e se mandaram, mas continuei por ali até o meio da semana.
Dois dias após nosso convescote, uma querida prima, muito considerada por nós e que estava gravemente enferma, partiu. Então, encerro aqui o assunto dos Moura Lima e passo para a Marilza, essa menina tão doce, tão meiga e que nos deixou tão cedo.
Por quase dois anos acompanhei o sofrimento dessa prima e de seus familiares. A Marilza era uma mulher singular: honesta, generosa, simples, humilde, fervorosa e otimista. Quem a visitava saía de lá com o espírito elevado.
Foi numa tarde ensolarada, após uma sesta, que um áudio no WhatsApp me trouxe o passamento da prima. Minha irmã, que costumava acompanhá-la nas idas e vindas do hospital, deu a notícia. Abaixo, segue um pequeno relato do que vi e vivi naquele anoitecer. Isso foi partilhado com alguns de minha família, mas será registrado neste blog de memórias.
Ainda na tarde daquele dia, fomos até a casa da Marilza e encontramos lá o esposo e o filho; pouco depois chegaria da escola a filha – uma menina-moça, mais menina do que moça. Ali era tudo devastação, solidão, um sofrimento indizível. Minha irmã e uma tia, que era comadre da minha prima, também estavam presentes e os ajudavam a organizar as coisas. Porém, alguém teria que dar a notícia aos pais da Marilza, e elas foram até a casa deles. Eu continuei por ali sem saber o que fazer, totalmente perdido, tentando encontrar um caminho.
Daí, tive uma feliz inspiração. Como todos estavam sem condições para resolver as coisas, decidi agir. Pedi permissão para assumir a difícil tarefa de cuidar da burocracia com translado, funerária etc. Mas, antes de sair para Visconde do Rio Branco, uma cidade vizinha, aproveitei que eles estavam na varanda da sala, e os convidei para uma pequena prece. Antes, porém, afirmei que o papai amparou a mamãe após a partida dele. E assim será com eles também: a Marilza cuidaria de cada um.
Eu disse: “A Marilza queria muito cuidar de todos vocês, mas estava doente e não conseguia; agora ela tem força para fazer o que tanto desejava. Podem confiar na intercessão dela, porque assim se deu com a minha mãe, que foi assistida e socorrida pelo meu pai.”
Após essa minha intervenção, fizemos uma pequena prece. Ao fim, embora ainda estivessem emocionados, todos me pareceram um pouco animados.
Mais tarde, quando retornei da cidade, o clima naquela casa era bem outro e o pessoal estava completamente refeito. A minha conclusão: a Marilza se fez presente ali! Isso eu posso atestar porque, embora minha fé seja diminuta, numa coisa eu acredito: “quem faz o bem, recebe o bem e continua fazendo o bem no além!”
(*) Esse foi o ‘segundo encontro’ programado, mas o terceiro realizado.
FILIPE
“Deus abençoe sua boa vontade! Deus lhe pague! Graças a Deus!”, esses foram os dizeres mais frequentes de minha mãe, que neste ‘vinte e três de maio’ completaria oitenta e cinco anos. Para alguns, tais frases talvez sejam desprovidas de sentido, podendo até lhes causar certo estranhamento, mas não para quem conviveu com ela.
Mamãe, ao longo da vida, passou por diversas fases. Sua personalidade, marcante, foi forjando a vida dos filhos e de quem mais esteve por perto. Posso falar disso, porque conheci mamãe desde os tempos em que ela era uma “meninota” de vinte e poucos anos.
De início, lá na juventude, mamãe foi uma mulher vaidosa, que se maquiava com pó de arroz e ruge. Também usava uma bolsinha de mão e sombrinha colorida de cabo bem-trabalhado, coisas do tempo de solteira. No entanto, batom, esmalte e brincos mamãe nunca usou e se irritava com alguém que lhe oferecesse. Isso ela aprendera com o pai, meu avô Aurélio, que, para ele, esses luxos seriam vícios de quem não é muito ligado às coisas de Deus.
Com o tempo, mamãe parou de usar o pó de arroz, mas tinha um quê com os cabelos, que deveriam estar sempre longos (nada de tesouras ali!). Houve um tempo em que ela mesma os trançava, embora as tranças não fossem assim tão bem-feitinhas. Para dar uma caprichada, mamãe costumava entrelaçar umas fitas coloridas nas madeixas, e papai parecia gostar do resultado.
O temperamento forte da mamãe deve ter sido transmitido aos filhos. Não sei de meus irmãos, mas herdei muita coisa dela; só não herdei a firme devoção aos santos e a fervorosa oração diária. Mas alguns traços da personalidade de ‘quase incivilidade’ e de ‘dificuldade nas relações’..., vou segredar aqui aos poucos que me leem: isso eu herdei da minha mãezinha!
Pronto. Confidências feitas, agora vamos à segunda parte, que é a mais interessante.
Mamãe, ao longo da vida, foi solitária, soturna e temperamental. Era comum que se trancasse no quarto onde ela chorava a desventura de ser uma mulher doente e pobre. Meninos ainda, não entendíamos absolutamente nada do que estaria acontecendo com ela. Papai estava sempre atento àquilo, mas ele não podia ficar em casa, porque precisava trabalhar. E assim fomos convivendo com as dores de nossa mãe durante toda a infância e adolescência.
Quis Deus, porém, que mamãe experimentasse a fortuna da velhice e aqui as coisas mudaram radicalmente para melhor. Já octogenária, mamãe tornou-se uma pessoa extremamente amável, alegre, receptiva, um amorzinho! Era muito comum ouvir dela: “Boazinha de coração!”, seja para filha ou filho. Perguntado quem era ‘boazinha de coração’, ela respondia: “Você mesmo!!!”
Então foi aquela mulher, já anciã, que me fez ver que a doença não nos afasta da bondade. Os tempos mais felizes vividos por minha mãe poderão ter sido esses dois últimos anos. Viúva, acamada, usando oxigênio e se alimentando precariamente por uma mamadeira, mamãe foi cuidada como um nenê, mas se comportou como um ‘bebê feliz’. Ela era tão carinhosa, que bastava passar pelo quarto ou se sentar por alguns segundos ao seu lado – eu disse ‘segundos’, não ‘minutos’, que ela já estendia a mão e dizia “Deus abençoe!”. Essa era a maneira tão peculiar com que mamãe nos agradecia, seja por um alimento, um pouco de água, um aperto de mão ou um olhar.
De todas as lições deixadas pela minha mãe, a mais eloquente é a ‘gratidão’.
FILIPE
“Apenas a ignorância, e tão somente ela, pode nos fazer felizes”.
A frase acima é de minha lavra, e por isso mesmo de péssimo gosto. E como mau frasista que sou, por coerência, continuo escrevendo más crônicas.
Partindo da premissa de que apenas os ignorantes são felizes, então não sei o porquê de minha tristeza. Ultimamente estou numa melancolia de dar dó e por isso evito o noticiário, todo ele. Não tenho tomado conhecimento dos fatos de Brasília, do meu estado, do meu município e, muito menos, do mundo. Sei que a Rússia continua esganando a Ucrânia e Israel prossegue fustigando os palestinos. Como não posso deter a fúria assassina daqueles genocidas, prefiro não tomar pé dos acontecimentos.
O mesmo acontece com as notícias que vêm do sul. Sei que o Rio Grande está sob um dilúvio de proporções bíblicas e que o gaúcho vive seus piores dias. Aqui, sim, eu poderia fazer alguma coisa, e tenho tentado. A minha contribuição se faz com algumas preces, que são bem fraquinhas – e com uma irrisória contribuição financeira, que poderia ser mais significativa caso minha humana sobrevivência permitisse.
Ah, e o cavalo? Então, embora eu não tenha lido nada sobre aquelas cheias, sei do desespero dos gaúchos e deles me compadeço conforme já exposto acima. Do cavalo, eu soube de sua aflição por várias fontes. Diziam que ele estava por dias num telhado, sem água nem comida. Só não me contaram o que o animal fazia ali: se esperava por socorro ou pela morte. Felizmente, apesar dos protestos de “pessoas de bem”, uma equipe de salva-vidas resgatou o Caramelo – esse é o nome do animalzinho.
A Natureza não é aquela mãe ingênua e charmosa conforme os românticos acreditam. Ela é sábia, generosa, mas exigente e até vingativa. Não seria de bom-tom desafiá-la como temos feito. O desmatamento, a contaminação das águas e do solo, a emissão de gases de efeito estufa e outras traquinagens farão gemer esta geração e a próxima – isso se houver a próxima!
Ainda bem que o nosso bravo povo sulista não se separou do ‘brasilzão’ conforme querem alguns desalmados. É de todos conhecido o rompante separatista de certos gaúchos e catarinos desejosos de criar a ‘república do sul’, incluindo aí o Paraná. Para aqueles celerados, o norte e nordeste são obstáculo ao desenvolvimento econômico puxado pelo sul. Contudo, neste momento aflitivo a solidariedade aos sulistas veio de todos, particularmente da população agreste.
Quando vi a imagem triste do tristonho Caramelo, pensei que ele estivesse nessas ruminações aqui descritas. No entanto, acho que ele estava mesmo é esperando por Noé. Que, enfim, chegou!
FILIPE
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