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Começo escrever este texto numa manhã fria e nublada deste mês de maio. Lá fora, um bem-te-vi, que mora na mangueira ao lado de casa, ainda há pouco estava chamando insistentemente a sua “esposa”. O bem-te-vi mandou-se para os ares e me deixou aqui no rancho com a Pituka e o Tiziu, que continuam enroscados em seus trapos, não sei se de lã ou feltro. E enquanto digito este texto, a Rita Lee canta “Saúde”, dizendo: “(...) enquanto estou viva e cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz”.
Minha história com esta cantora começou na década de setenta e foi assim. Numa de suas férias do seminário em Juiz de Fora, meu irmão mais velho trouxe uma dezena de pôsteres de artistas que estavam em voga naquela época, e essas fotos foram coladas numa parede da sala. Eram atrizes de novela e cantoras, que eu desconhecia por completo. Naquele tempo, pouca gente na minha terra tinha televisão, e na roça, onde morávamos, não tínhamos sequer rádio de pilha. Para nós, esse irmão era uma minicelebridade, porque era ele quem nos trazia as “novidades da civilização”.
De todas aquelas artistas cujas fotografias enfeitavam nossa humilde sala, eu me recordo de apenas duas: Dina Sfat e Rita Lee. Da Dina eu me lembro só do nome; da Rita, já lembro da imagem mesmo. No alto da parede, tal qual num olimpo, estava a Rita Lee: linda, de olhos claros e expressivos, cabelos longos e a franja que a acompanharia até seus estertores.
A nossa casa era de tijolos aparentes – não por charme, mas pobreza mesmo –, mas a sala ficou particularmente charmosa com aquela pequena galeria de celebridades. Todos gostamos e ficamos encantados – menos papai, que chegou e mandou retirar ‘tudo aquilo dali’.
Foi um anticlímax. Meu irmão começou a tirar cuidadosamente uma por uma para que não rasgasse, mas em vão foi seu esforço. As “meninas” não queriam “descer da parede” e o negócio foi retirá-las à força.
Ficamos tristes, mas a obediência aos pais era um imperativo na nossa família. Embora houvesse um choque geracional entre pais e filhos, papai era sempre compreendido e respeitado por todos nós.
Pois então, semana passada Rita Lee encantou-se. Dela fica o magnífico repertório e um legado de rebeldia e liberdade, concordemos ou não com ela.
Para seu epitáfio, Rita escreveu: “Ela nunca foi bom exemplo, mas era gente boa”. Sim, Rita Lee era gente boníssima. Em vida, muito discretamente, sempre doou suas roupas para moradores de rua. E tinha espiritualidade também. Embora não fosse declaradamente adepta de credo algum, todas as noites, antes de dormir, ela e seu marido faziam suas preces.
Rita Lee partiu na certeza de que deixou um ‘monte de gente feliz’. Mas a sua ausência deixa a vida um pouco mais triste.
FILIPE
Publicado no jornal 'A Tribuna de Amparo' -- edição de hoje.
O que está acontecendo com a nossa Rádio Cultura?
É manhã de domingo. Ligo o rádio, que sempre esteve sintonizado na rádio Cultura de Amparo, mas preciso desligar porque a programação não é mais aquela que me fez ficar enamorado dessa emissora desde há muitos anos. Antes, aos domingos, havia música erudita bem no comecinho da manhã. Em seguida, uma sequência musical genuinamente brasileira fazia meu domingo pulsar até o meio-dia. Agora, não mais.
As manhãs de sábado também perderam o brilho musical na Rádio Cultura. Às sete da manhã, havia um programa especial contando a vida de determinado ícone do nosso cancioneiro. Em seguida, a programação continuava em linha com o espírito da emissora, tocando sempre MPB no gênero raiz. O programa biográfico acabou e a sequência musical ficou desidratada.
Há tempos, por falta de sintonia com o programa e simpatia com o apresentador, deixei de ouvir a Rádio Cultura nas manhãs de segunda a sexta-feira. Mas as tardes me eram propícias, particularmente o programa das 17 horas, cujo apresentador, Marcelo Lari, é uma ‘reserva moral’ do rádio brasileiro. No entanto, e isso não é culpa do locutor, a seleção musical ficou bastante prejudicada desde a aposentadoria de Cecília Beltramelli, produtora musical que trabalhou na emissora por muitos anos. Com a saída daquela profissional, nomes como Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco e outros titãs da cena musical brasileira foram postos no ostracismo, numa espécie de ‘macarthismo tupiniquim’ agora presente em Amparo.
Numa tarde dessas, tentei insistir no dial da Rádio Cultura, mas tive que desligar. Não pude conter a indignação ao ouvir (na minha rádio!) um pagodeiro... E desses aí, bem midiático!
Ah, raríssimo leitor, não me tenha por preconceituoso. Musicalmente talvez eu seja, mas aqui a minha intenção é defender um espaço que sempre privilegiou a autêntica MPB. Para quem gosta e quer ouvir pagodes, sertanejos universitários e que tais, há uma miríade de emissoras por aí – e eu não gostaria de que a nossa Rádio Cultura entrasse naquela seara.
Infelizmente — por ideologia, descaso, ignorância ou compadrio —, decisões erradas estão sendo tomadas e a nossa Rádio Cultura perde muito do elã com que tanto me seduzia para se tornar uma emissora como outra qualquer.
FILIPE
A foto acima foi tirada enquanto nós, os Moura Lima, estávamos reunidos na varanda de nosso saudoso pai. Foi neste espaço que papai viveu o melhor de suas horas desde que a velhice lhe tocou o ombro. Aqui o patriarca usava suas redes sociais, fazia palavras cruzadas, ouvia rádio, jogava baralho com as netas, recebia os amigos para tomar café, proseava e tirava um cochilo num velho sofá. É nesta varanda que a família sempre se reúne para refeições, preces e até uma espécie de sarau musical, que vez ou outra acontece. Por tudo isso, este modesto anexo da casa tornou-se para nós um espaço sagrado, quase um templo.
A iniciativa do nosso encontro começou assim. No dia seguinte à despedida do papai, nós nos reunimos para acertar coisas pendentes e decidir quais caminhos trilharíamos a partir de então. Naquela ocasião, eu propus que se fizesse uma reunião anual com todo o ‘clã Moura Lima’. Todos aceitaram a minha sugestão, mas, como sempre, não faltaram alguns tropicões. E, entre convergências e divergências, uma data foi provisoriamente acertada. Tempos depois a data foi alterada a fim de que todos pudessem comparecer. E assim aconteceu, apesar de grande sacrifício de alguns que tiveram de viajar a noite toda para ficar umas poucas horas com a família, e ainda retornar no mesmo dia, viajando por outra noite inteirinha. Todavia, o esforço valeu a pena e nosso encontro passará a ser uma ‘efeméride’ – segundo a definição de um irmão mais intelectualizado.
Então, sob o sisudo cajado do irmão mais velho – cuja primogenitura é exercida por ele com indisfarçável gozo – pudemos experimentar momentos de profunda emoção nesse encontro, havendo lágrimas torrenciais, particularmente quando se rememorou o legado de nosso pai. No entanto, sonoras risadas também puderam ser ouvidas de longe quando um Moura Lima mais engraçadinho desanuviava o ambiente. Já ao fim de nossa “tertúlia”, houve missa concelebrada pelos três irmãos padres e depois o almoço patrocinado pela nossa querida mãezinha, que se encontra enferma.
O nosso compromisso é de nos mantermos unidos, conforme exortava nosso velho e bom pai. Contudo, de vez em quando um fio desencapado costuma produzir alguma faísca, provocando um breve curto-circuito no grupo de WhatsApp – problema logo resolvido por um irmão mais habilidoso. Mas é importante ressaltar que temos a fortuna de não encontrar na irmandade ninguém de “gênio forte” – usando aqui uma metáfora um tanto açucarada para “alma cabeluda”. Dessa forma, a nossa convivência se torna mais tranquila sem que isso seja uma virtude dos Moura Lima.
FILIPE
A casa está vazia: mamãe no hospital e papai nas “Alturas”. Aqui tudo está virando um passado, que chega muito apressado.
Esta noite passei no quarto de minha mãe e dormi na cama que foi de meu pai. Tive uma noite tranquila, de sono sereno. Eu estava bastante cansado depois de quatro noites de insônia ou de sono precário e precisava dormir. Foi então nos aposentos paternos que tive o ‘sono bom dos bons filhos’.
No momento em que me ponho a “rabiscar estas mal traçadas” – aqui usando esse termo bastante puído, e brega –, uma tímida aurora afasta as últimas trevas, restando ainda uma ave noturna em tristes gorjeios. Uma corruíra já canta alegremente numa árvore ao lado da casa e lá no pasto, bem ao longe, vozes de joões-tenenéns, quero-queros, joões-de-barro e outros cantares que não consigo identificar ensaiam um promissor recital. Até um galo garboso, orgulhoso de seu harém, rasga a garganta lá pelas bandas da lagoa. O dia avança e domina.
Sentado à mesa de granito, sobre a qual papai carteava com as netas, enxergo um pequeno memorial do Velho. À meia-luz, posso ver fixados numa parede a bengala, um cinto, a tesoura com que ele cortava cabelo dos filhos e compadres, o aparelho de barbear e um carregador de celular. Já a mesinha onde ele punha o notebook não está mais ali, e o seu guarda-roupa migrou do quarto para cá. Dentro dele há ainda muitos de seus pertences. Na parede, à minha frente, há uma foto antiga em que papai e mamãe, ainda bem moços, celebram suas Bodas de Prata. Ela, com o caçula no colo, e ele, de mãos cruzadas – ambos olhando fixamente para a câmera.
Como se vê, neste Sábado de Aleluia tudo parece ser alegria. A natureza festeja após uma noite de chuva fina e intensa. Para este escriba, no entanto, o dia está cinzento. A varanda vazia da presença de meu pai e o quarto vazio da presença de minha mãe são motivos de tristeza profunda.
Aquele hospital, com quartos abafados e paredes frias, não me afligem. Mamãe está lá mais uma vez depois de tantas idas; um ano atrás, papai lá se hospedara por uma única vez e de lá não voltou mais. Gosto de estar naquelas enfermarias, porque ali sinto a presença de meu pai. Eu o vejo caminhando pelos intermináveis corredores e posso vê-lo subindo ou descendo as emborrachadas rampas, com suas longas mãos deslizando nos corrimões. Meu Velho está lá, e não aqui nesta varanda, que foi tanto dele.
Esta varanda, esta casa, este sítio e os montes que o rodeiam, e até as nuvens e o céu noturno estrelado – tudo isso, antes tão meus – estão virando uma folha de jornal que foi lida e relida. E agora, já amarelado, este “jornal” será para sempre guardado. Repouse em paz, ó passado, e não me desassossegue!
Os tais “escaninhos da memória”, conforme querem os pretensos poetas, serão os guardiães dessas reminiscências. Sim, porque papai já se foi, mamãe não tarda e eu já preparo minha trouxa. E, sem delongas, preciso me despedir desse outrora doce recanto, porque, como bem disse Belchior, “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
FILIPE
O relógio acima ficou famoso não por ser raro e caro, mas pelo enredo em torno dele. Como no planeta há apenas 25 exemplares desse modelo, seu preço deve ser ‘um pouquinho maior’ do que os ‘oitocentos mil reais’ anunciados.
Se eu pudesse, escreveria sobre esse relógio mecânico, cuja corda dá autonomia e precisão por nove dias. Nele tem ouro, safira até couro de jacaré, e sua marca eu nem consigo pronunciar. No entanto, vou falar de minha experiência e frustração com outro relógio.
Na infância, e já entrando na adolescência, meu maior sonho era ter um relógio de pulso. Poderia ser um bem vagabundo, contanto que marcasse as horas eu já estaria satisfeito. Naquela época, a marca mais famosa para nós, simples campesinos, era a Mondaine. Como jamais eu poderia comprar um Mondaine, resolvi procurar outro, desde que coubesse no meu pobre orçamento. E a coisa se deu da seguinte forma.
Estava eu na casa de uma senhora muito querida que morava com um homem bastante malandro nos negócios. Por razões óbvias, vou omitir o nome daquela senhora, que por acaso era minha avó (oh, não falei o nome!). Do nada, aquele senhor resolveu me mostrar sua coleção de relógios de pulso. Ele tinha vários modelos, de todos os tamanhos e para todos os gostos. Peguei um, pus no pulso, peguei outro e experimentei também, e aquilo foi me deixando fascinado. Por fim, e sem saber com qual eu ficaria, vi um de pulseira metálica e mostrador reluzente e perguntei o preço. “Qualquer um eu faço por ‘cem’, pode escolher”. Agora não me pergunte ‘cem o quê...’, porque não lembro qual era a moeda naquele tempo. Sei que eu teria de vender um saco de feijão, que eu não tinha, para poder pagar o relógio, que eu queria ter.
O homem me confiou o relógio e voltei para casa com ele no pulso. Eu estava feliz, mas muito preocupado em como conseguir o saco de feijão para pagar aquela dívida. Mas a minha preocupação aumentou: o relógio não funcionava e eu teria que levá-lo ao relojoeiro para, nas palavras do negociante, “uma pequena limpeza”. Foi o que fiz logo em seguida. Mas o homem que consertava relógio, um soldado da polícia militar, não me deu o orçamento na hora e pediu para eu voltar na semana seguinte. Ansioso para pagar o relógio, corri atrás do feijão de que eu precisava. Nem lembro como fiz, mas deu certo. Acho que meus irmãos mais novos me ajudaram na empreitada, catando uma espécie de xepa nos roçados da vizinhança.
Conseguido o feijão, paguei o relógio e agora teria de arrumar dinheiro para pagar o conserto, que não deveria ser barato. Na oficina, assim que o relojoeiro me viu, ele abriu uma gaveta, pegou o relógio e me entregou. Recebi o relógio tomado de contentamento, mas temeroso do valor que teria de pagar. Perguntei o preço do conserto e o homem respondeu: “Nada!” Estupefato, falei: “Uai, o senhor não vai me cobrar nada?!” O homem foi direto: “Esse relógio é da marca Megalo, e isso não tem conserto. Pode jogar fora”. “!?”
Em casa, fui aconselhado a devolver o relógio e pegar meu dinheiro de volta, mas eu pensava que o risco fazia parte do negócio e fiquei no prejuízo. Hoje, por razões pouco louváveis e nada republicanas, há gente sendo obrigada a devolver um relógio: aquele que ilustra essa crônica.
FILIPE
Em certa ocasião, ainda nos meus “verdes anos”, estava de passagem por Ouro Preto e tencionava ir a Ponte Nova. Parece que não havia rodoviária na cidade e eu tive de esperar o ônibus na rodovia. Mal chegara ao local, uma caminhonete parou e o motorista perguntou qual seria meu destino. Respondi que não tinha parada certa, mas iria a Ponte Nova. De lá, seguiria para outras cidades e meu último porto seria Juiz de Fora. Entrei na caminhonete já preocupado em ter que puxar assunto como forma de pagamento pela carona. Não foi difícil. Conversa vai, conversa vem, ele me disse que tinha fazenda em Mato Grosso e que estava à procura de trabalhadores. O ordenado era equivalente a uns três salários mínimos – nada mal para aqueles tempos bicudos de início dos anos oitenta.
Naquele tempo, eu tentava ganhar a vida mascateando pulseiras de relógio e percorria várias cidades da Zona da Mata e do Sul de Minas Gerais. Embora meu trabalho fosse precário, desconfiei da oferta tentadora e não quis me aventurar nas terras mato-grossenses.
Já passados quarenta anos daquele episódio, vem-me a certeza de que a empreitada seria uma cilada para jovens desempregados. Eu teria sido escravizado numa fazenda e meu destino seria muito incerto. Pelo que leio no noticiário, o agenciamento de trabalhadores para ‘cativeiro’ segue um roteiro como aquele dos anos oitenta. Salário generoso, alojamento, alimentação, transporte... e uma observação: “todo mundo quer emprego, mas ninguém quer trabalhar”.
Conheço bem os escravizados ou semiescravos. Na infância convivi com pessoas nessa situação, particularmente os lavradores meeiros. Nessa modalidade de servidão, muitas vezes o lavrador é quem preparava a terra, semeava, cultivava e depois, na colheita, o dono da fazenda só aparecia para abocanhar a metade. Ainda: se o meeiro morasse na fazenda, sua obrigação era de ajudar o patrão a plantar toda a lavoura dele. Depois que aquelas roças fossem preparadas é que o empregado ficaria liberado para cuidar de seu roçado – muitas vezes em solo bruto, pedregoso, infértil e distante; ao dono eram reservadas as melhores terras.
E tem mais. O empregado ganhava uma merreca pelo dia trabalhado nas roças do ‘seu senhor’ e as condições eram deprimentes. Descalço e de roupas rotas, ele levava de casa um caldeirãozinho de comida rala da qual se servia fria sentado no cabo da enxada sob o sol quente. O patrão não lhe oferecia sequer um cafezinho.
Se o sertanejo alcançasse a velhice, que lhe vinha precoce, por volta dos cinquenta e poucos anos, ele seria dispensado. Alquebrado, maltratado pelos sóis e chuvas intermitentes, o “homem velho” não aguentaria mais um verão na fazenda. Então sua choupana deveria ser desocupada e nela se instalaria ‘outros braços’, agora jovens e fortes.
Naqueles tempos longínquos, o homem do campo não se aposentava. Improdutivo e doente, passava seus últimos dias vivendo de caridade na casa de parentes ou, com sorte, findaria na tal “vila dos pobres”.
Ironicamente, foi na ditadura militar que a sorte do sertanejo começou a melhorar. Em 1971, Emílio Médici, o mais sanguinário dos ditadores, concedeu ao trabalhador rural (homem e com 65 anos) o benefício de meio salário mínimo (200 reais atualizados). Após a Constituição de 1988, homens e mulheres do campo puderam se aposentar com um salário mínimo (ela aos 55 anos, e ele aos 60 anos).
FILIPE
Decidi fazer uma limpeza nos meus armários e separei uma papelada para reciclagem. É um trabalho penoso, porque não gosto de descartar nada. Sempre espero achar tempo para ler aquele jornal ou revista, que há anos me espera pacientemente numa gaveta. E tem os livros... Ah, como dói ter de descartar esses danadinhos! Mas não tenho vaga para os livros didáticos. Ano passado mandei oitenta quilos para a reciclagem (fiquei curioso e pesei!), mas ainda restaram alguns, que estão sendo despedidos, infelizmente. Mas os demais jamais sairão daqui.
Sobre os livros didáticos, eu poderia escrever vários textos falando deles. Companheiros fiéis, os coitados são comumente desprezados. Quando eu lecionava, via chegar caminhão carregado de material escolar, principalmente livros e apostilas. Mas esse material era subutilizado e muitas vezes abandonado por alunos, que sempre o “esqueciam” embaixo das carteiras. A culpa não é toda dos alunos, mas de altos funcionários da Secretaria da Educação, que inventam novas metodologias em detrimento do “arroz com feijão” que são as velhas e boas “cartilhas”.
Na faxina que estou fazendo, deparei com um pequeno recorte de jornal, já amarelado, trazendo um texto com o título que abre esta crônica. O artigo escrito por Flavio Comin, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, traz uns dados avassaladores sobre os brasileiros em relação à matemática. No universo de 2.632 pessoas entrevistadas em 25 cidades, todas acima de 25 anos, constatou-se o seguinte: “um terço não consegue fazer operações básicas de multiplicação; 75% não sabem calcular médias simples nem compreendem frações; seis em cada dez não relacionam frações simples do tipo 3/4 a porcentagem nem resolvem problemas simples de regra de três para a confecção de um bolo; sete em cada dez não sabem fazer conta básica envolvendo taxas de juros; a metade não acertou onde há maior risco de erro num tratamento médico: se 1 em 10, 1 em 100 ou 1 em 10.000.”
A pesquisa avançou sobre resultados educacionais e verificou que “60% dos entrevistados não gostam de matemática, 65% têm dificuldade com a matéria e mais de 90% dos concluintes do ensino médio não têm conhecimento adequado nessa disciplina”.
O texto em questão foi publicado na Folha de S. Paulo em novembro de 2015, anos antes da pandemia que lançou num abismo ainda muito mais profundo toda uma geração.
Fico imaginando o Zé Lopes trabalhando de pedreiro e tendo como servente o filho Filipe. A masseira deve ser feita usando nove latas de areia misturadas com uma lata e meia de cimento e um saco de cal hidratada. No fim do dia, o pedreiro diz ao ajudante: “Filipe, agora eu preciso de apenas terça parte da masseira, porque senão vai sobrar massa.” Como o Filipe vai fazer isso, se ele não entende de frações?
Ah, tem também a dona Maria, que faz bolo. Para vinte pessoas, ela pega uma receita que usa dois quilos de farinha, meia dúzia de ovos, meio quilo de açúcar e 600 ml de leite. Se dona Maria tiver que fazer um bolo para trinta pessoas, como ela vai se virar?
Ah, mas a dona Maria é esperta. Ela entende de proporções e vai fazer tudo certinho. Agora o servente de pedreiro lá em cima... Sei não.
FILIPE
Tenho diante de mim, na mesa de lazer, que já foi mesa de trabalho, uma pequenina Virgem – que é miniatura da imagem encontrada nas águas do rio Paraíba no início do século 18. A imagem da ‘Senhora Aparecida’, preta e nua de paramentos, é muito mais autêntica e bela do que aquela azul, coberta de brocados e coroa de ouro, como todos conhecemos.
Adquiri essa imagem uma semana atrás, quando estive em Aparecida a fim de cumprir um voto antigo: entregar minha longa jornada de trabalho. Antes de entrar no magistério, fui comerciário, operário, lavrador e biscateiro. Foram mais de cinquenta anos mourejando num trabalho intenso, penoso e mal remunerado para, finalmente, conseguir a aposentadoria.
Com uma vida tão sofrida, a cada embaraço que surgia, um desânimo me tombava e eu me fechava cético. Com a maturidade, porém, entrei numa fase mais transcendental. Quando as coisas apertavam, eu buscava amparo nas preces, e assim fui rompendo barreiras e transpondo obstáculos. Não sei se “combati o bom combate e guardei a fé” como fez Paulo, o apóstolo, mas com muita certeza houve combates, e com pouca certeza houve fé. Mas preciso falar sobre minha viagem à Aparecida.
Essa foi a terceira vez que estive naquelas terras. Na primeira vez eu estava me despedindo da adolescência; na segunda vez eu entrava na maturidade; e nesta terceira vez já sou debutante da “terceirona”.
O Santuário de Aparecida é um templo a céu aberto. Onde quer que se vá veem-se ícones religiosos e monitores transmitindo rezas, missas etc. Tudo lá é grandioso e belo. As monumentais fachadas com seus mosaicos são uma atração à parte. Mas aquela cidade não é para muitos. Explico.
Quando se fala em “devotos de Nossa Senhora”, sempre penso nas pessoas mais simples, pobres mesmo. Mas no Santuário não há espaço para esses. Tudo lá é muito caro e parece que foi feito apenas para rico (ou para pobre sem juízo). Como não sou rico e tenho juízo, sou excluído de tudo aquilo. Continuo.
No subsolo do Santuário há a ‘Casa do Pão’, que é administrada pelos redentoristas (eu sei porque perguntei). Pensei: ali vou poder matar minha fome. Padres são bonzinhos e têm compaixão dos devotos. Peguei uma fila na qual fiquei mais de uma hora. Que decepção!
Aqui vai um conselho. Quem tem pouco dinheiro, fuja da ‘Casa do Pão’. Lá, o pobre que chega com o estômago vazio, tem que vender as tripas para fazer o desjejum. Um cafezinho, que vem num copo de plástico, mais um biscoito frito, bregamente chamado de ‘donat’, não saem por menos de quinze reais. E não adianta procurar pão com manteiga na ‘Casa do Pão’ porque você não vai achar. Hotéis, restaurantes... esqueça! Se você levar de casa uma marmita e um saco de dormir, talvez seja uma alternativa.
Pretendo voltar a Aparecida, não como peregrino, mas como turista. Em casa eu rezo e faço penitência; em Aparecida posso rezar, mas quero mesmo é apreciar os tesouros arquitetônicos – e sem muita penitência.
E por falar em oração, pergunto: por que num santuário mariano, onde as mulheres deveriam ser protagonistas, a “Consagração a Nossa Senhora” é sempre feita por homens? Se alguém puder responder, eu agradeço.
FILIPE
É manhã de sábado. Lá fora há um sol de verão num céu seminu, quase sem nuvens; no rádio, um programa especial com Nora Ney, que neste momento canta ‘Ronda’ – canção de Paulo Vanzolini, composta em 1953; ao meu lado e embaixo da mesa, a Pituka, que dorme, sonha e ronca; no computador, este cata-milho tenta escrever algo para atualizar o blog.
Paro de dedilhar e pego o chimarrão. A cada gole de mate, um pensamento vem e se perde. O texto não tem rumo. A Pituka desistiu de mim e se foi para o portão. Seu passatempo é xingar a vizinhança, particularmente um “molequinho” que mora ao lado e de vez em quando a provoca. O sonho da Pituka é travar refrega com todos os canídeos que passam na rua, e eles são muitos!
Neste momento, um estridente bem-te-vi anuncia algo muito importante para sua família. Não o vejo, mas ouço sua cantoria. Outros pássaros estão em festa: joões-de-barro, tico-ticos, anuns... Por aqui há uma diversidade desses e muito mais. Ontem à tarde, até um carcará deu sinal de vida.
Agora a Nora Ney já se despede do rádio e paro de digitar para preparar um café para minha companheira. Mais tarde volto aqui, esperando que o texto saia de forma mais ou menos palatável.
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Voltei. Agora é noite com céu nublado e uns chuviscos, e não há os bem-te-vis, sanhaços e canários-da-terra que alegravam minha manhã. A noite seria silenciosa, se não fosse uma solitária ave noturna gorjeando na escuridão. Ouço também o rufar dos sapos numa lagoa distante e o chilrear de grilos no quintal. Ao meu lado, a dorminhoca Pituka continua sonhando seus sonhos de menina mimada e protegida, que merecidamente é.
Durante boa parte do dia, queimei os miolos tentando habilitar um novo celular, mas acabei desistindo. Sempre uso o sistema operacional ‘Android”, mas o aparelho novo opera em “iOS”. Não entendo nada desse treco e, depois de tanto sofrer, resolvi dar um tempo. O pior é que fiz uma transferência a meia-boca dos dados de um aparelho para outro e fiquei sem WhatsApp.
Amanhã, com sorte, vou conseguir; sem sorte, recorro a uma sobrinha, a uma amiga... ou à Maria Eugênia, que com seus incompletos três anos de vida já tem mais domínio de tecnologia digital do que este escriba.
Caso ninguém consiga me ajudar, recorro à Pituka.
Socorro, Pituka!
FILPE
Tokinho partiu e partiu meu coração. Eu não estava em casa na sua inesperada despedida. Parece até que ele não me quis por perto para que eu não sofresse com sua agonia.
Tenho outros cães e já tive tantos outros, mas Tokinho era especial em tudo. A pelagem espessa e caramelo-escura, os olhos em castanho-mel, as orelhas arregaladas quando vigilante, o rabo abandeirado e agitado horizontalmente quando pedia algo... Agora tudo isso é passado.
Será triste a minha chegada. Não vou ver ao longe o cãozinho eufórico me esperando no portão. E depois correndo e latindo para a porta de casa, e, em seguida, ronronando feito gato mimado.
Tokinho era um cão de guarda e companhia. Mais de companhia porque dócil; um pouco de guarda porque sinalizava a chegada de alguém. Seu latido, antes forte e vigoroso, com a idade foi perdendo corpo, ficando quase fanhoso. O faro acurado permaneceu, mas a surdez o imergiu num estranho universo de silêncio.
Eu teria muito a escrever sobre esse amigo – talvez um livro. Isso porque, em mais de dez anos, Tokinho foi intenso em nossa vida. Sua “mãe”, que está arrasada, perdeu o companheiro de todas as horas, boas e más. Tokinho só não dirigia. Bastava o tintilar da chave do carro que o “moleque” se agitava todo e descia célere para a garagem. E era só abrir a porta que, num salto, o safadinho se aninhava no banco de trás do automóvel e de lá ninguém o tirava. Ali ele era soberano e seu mau-humor era indisfarçável caso eu quisesse sentar ao seu lado. Se necessário, ele até permitia, mas ficava tão mal-humorado, que eu evitava. E enquanto eu estivesse ali, ele ficava “de mal”, com o focinho virado e jamais me olhava na cara. Claro que isso era apenas charme, porque o Tokinho era um cãozinho amável e feliz.
Outra coisa que o Tokinho amava era comida. Como o menino comia... meu Deus! Na hora da refeição, ele ficava no cantinho, sempre no mesmo lugar, esperando seu pratinho. Em casa, cada um tem seu lugar específico enquanto a comida é preparada, mas o Tokinho era mais disciplinado. Posto o pratinho no chão, ele devorava rapidinho para, depois, ficar cobiçando a comida alheia. Assim que os colegas abandonavam a “mesa”, ele literalmente varria tudo com a língua, não deixando sequer um grãozinho de ração.
Muitos de meus textos foram escritos tendo este cãozinho por perto. Seu berço era uma bacia que ficava no escritório – um cômodo simples, apartado da casa. Enquanto ele estava enroscado no seu leito e sonhava seus sonhos bons, eu divagava e dedilhava o teclado em busca de palavras menos toscas, tentando escrever um texto minimamente apresentável.
Ultimamente nosso cãozinho já quase não saía de casa. Muitas foram as razões para isso e uma delas era sua dificuldade para subir no automóvel. Estava gordinho e, quando saíamos, ele preferia continuar no seu lugar preferido, que era embaixo da mesa da cozinha. No entanto, ele conseguia fazer longas caminhadas comigo. Ah, como eu gostava de andar com o Tokinho pelo bairro! Era sempre nas manhãs de sábado. Por preguiça, talvez, eu parei de andar com ele e planejava retornar a caminhada em breve, mas... Agora acabou!
Vou parar de falar desse cãozinho, a quem Maria Eugênia chamava de Tutu, porque estou triste e desesperançado. Humanos, temos muito o que aprender com os cães – sobretudo a fidelidade, o desprendimento e a gratidão dessa pequena criatura de nome Tokinho.
FILIPE