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por feldades, em 25.04.15

Publicado originalmente no "blogdofilipemoura", em 12/01/13

 

Havia uma cerca de arame e uma tranqueira - uma espécie de porteira feita com arame farpado -, mas os fios estavam meio enroscados impossibilitando-me abri-la. Então, preferi abaixar-me e passar sob a cerca mesmo. Aproximei-me com vagar e notei que a casa estava fechada. Mesmo assim, continuei. A certa distância, chamei a dona da casa. Gritei uma, duas, na terceira vez fui interrompido por uma carinha observando-me de esguelha - ou  de “meia-jota” como diz mamãe. Era o Zé. Ele me reconheceu e voltou exclamando: “É o menino do Zé Lopes, mãe! Mãe, mãe, é o filho do Zé Lopes!!!” Nisto, veio a mãe se esforçando para engolir uma última garfada de sua janta e tentando limpar, com a barra da  manga do vestido, o feijão que lhe borrara a boca. “Chegou numa boa hora... Estamos jantando, vem comer também!...” Lá de dentro, o Zé se impacientava com a mãe: “Mãe, ó mãe, vem comer!...” A mãe replicou: “Espera aí, Zé. Eu estou conversando com o menino e já vamos entrar”. 

 

Ela voltou, entrou pela porta da cozinha e caminhou pela casa até a sala, abrindo a janela e a porta. Pôs a cara para fora e gritou: “Acaba de chegar! Não repare a bagunça, pois aqui sou eu e o Zé, mais ninguém. Eu estou velha e doente e o Zé é esse coitado aí. Anda esbarrado, que só... Então, a gente deixa a casa de qualquer jeito”. 

 

Entrei e me sentei numa das cadeiras. Escolhi a que fica logo embaixo da janela, dessas antigas, de madeira, e apoiei a cabeça nela. Comecei a fazer um movimento meio besta, batendo a cabeça contra a janela, tentando, com isso,  disfarçar o constrangimento de incomodá-los em hora tão imprópria. O Zé apareceu na sala, olhou-me com curiosidade e já ia voltando pra sua boia, quando me levantei esticando a mão para cumprimentá-lo. “Como vai, Zé? Não me reconhece mais?” O Zé me olhou meio assustado e respondeu: “Você é o menino do Zé Lopes. É o Filipe! Nós trabalhamos muito juntos, não é mesmo?” O Zé se recordava dos tempos em que ele e seu pai trabalhavam para minha família, lavrando a terra, colhendo cereais etc. Plantávamos milho, feijão, arroz... Por muito tempo ele e seu pai, o seu Lauro, trabalharam conosco. Lembro-me que o Zé era meio devagar na enxada, mas seu pai pegava a carreira sempre ao seu lado a fim de ajudá-lo. Assim, evitava-se a humilhação de “duas-por-uma”, o terror de qualquer lavrador. 

 

Então, naquela casa moravam a dona Lena e o Zé. O seu Lauro falecera há décadas e os demais irmãos do Zé casaram-se e saíram. Dona Lena, prima de meu pai e com quem estreitei laços já na sua velhice, era uma pessoa muito amável e piedosa. Uma senhora encantadora. Com ela pude confirmar uma história pouco conhecida. Certa vez - no tempo em que papai e esta sua prima Lena ainda eram crianças e estudavam numa escolinha da vila - a caminho da escola, um fulano troncudo e valentão cismou de subjugar a pobre mocinha, fazendo-a carregá-lo nas costas. A menina, com medo do brutamonte, ia se submetendo aos seus caprichos, mas papai interveio a tempo. Embora pequeno e franzino, papai muniu-se de coragem. Pegou do porretinho com que sempre andava e deu sonoras bordoadas naquele troglodita, livrando a prima da humilhação. Isso serviu de lição, pois o malandro nunca mais aprontou dessas. E dona Lena ficou para sempre muito grata ao priminho, pelo seu heroísmo.

 

Mas, a dona Lena se foi e deixou o Zé. Coitado do Zé! O que será dele sem sua mãezinha? "A vida é dura, Zé. E agora?... "

FILIPE

 

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2 comentários

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De Aureliano a 25.04.2015 às 20:04

Filipe,
quando vi "Zé" imaginei que seria uma homenagem àquela família, vizinha por muitos anos. Pessoas que sofreram muito. O Pai lhes dará a recompensa pelo esforço de fidelidade, mesmo em meio às inúmeras dificuldades. Doença, miséria, discriminação, exploração lhes eram abundantes. Como nos assegura nossa irmã mais velha, a Maria Marta, D. Lena sempre foi fiel à sua fé: a não ser por motivos de doença, nunca perdeu as celebrações na comunidade de São José de Vilas Boas. Morreu como membro do Apostolado da Oração. Estou convicto de que foi sua vida de fé em comunidade que lhe garantiram forças para enfrentar e superar as dificuldades da vida.
E o Zé do Lauro?... Deus proverá seus cuidados. Mas se houver corações compassivos, certamente, a vida não lhe será por demais cruel.
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De feldades a 26.04.2015 às 02:47

Costumo visitá-lo nas férias.
Da última vez, estava coma a irmã, Maria.
Está bem, de banho tomado e roupas limpas.
Noutras vezes, o vi sozinho na velha casa.
Tinha experimentado Vilas Boas, mas era muito barulho de carro (carro de boi?), mas parece que já se acostumou.

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