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DESENGANO

por feldades, em 26.04.14

Passava das cinco da tarde quando ela chegou. Estava cansada, arfante. Perguntou-lhe por onde andava. “Espera um pouco”, disse ela com dificuldade para falar. Sentou-se num banco de madeira e aceitou um copo d’água fresca. Ela pegou o copo, bebeu um gole e o devolveu com um semissorriso. As coisas pareciam meio complicadas para o casal, e, de uns dias para cá, ela sempre saía para fazer algo que ele ignorava. Houve uns tempos em que sua escapada era pela manhã; agora saía à tarde, bem de tardinha.

 

Quando menina, costumava ir ao armazém do seu Chico com a irmã mais velha para comprar uns doces. Não era bem “doce” o nome que se dava àquela iguaria feita quase que exclusivamente de açúcar e corante. Chamavam aquilo de bala-de-bico e havia nas mais variadas cores: caramelo, vermelha, amarela, laranja, verde etc. Conquanto não variasse o aroma nem o sabor, ela gostava das verdinhas; e quando não as encontrava costumava embirrar, recusando-se a voltar para casa. A irmã não lhe era muito tolerante. Pegava o chinelo ameaçando-a, mas só. Isso bastava e nunca se soube de alguma chinelada. Mas, pelo que se observava, parecia que aquele chinelo de borracha tinha funções mais nobres, além de dar proteção aos pés da mocinha disciplinadora.

 

Naquele dia ela o fitou com um olhar tristonho, com um quê de mistério que ele não conseguia desvendar. Como convém em momentos assim, ele fez as perguntas de praxe: “O que foi? Não está se sentindo bem? Em que posso ajudá-la?” – Ela lhe acenou com a mão espalmada expressando impaciência. Entendido seu desejo de ficar só, deixou-a por um momento. Foi ao quintal conversar com os bichinhos, um vira-lata e um poodle, que jamais recusaram sua companhia, nem a dela, nem  a de  ninguém.

 

Sentado embaixo de um abacateiro, passando o pé sobre a barriga do vira-lata e a mão na pelagem do poodle, repassou o filme dos últimos anos. Desde o dia em que a conheceu junto de sua amiga Vera, numa tarde de domingo na pracinha da Matriz. Incomodava-o a obsessão dela por esoterismo e a aguda aversão por religião. “Coisa pra trouxa”, dizia sempre. Lembrou-se dos cabelos longos e encaracolados que, na brisa daquela tarde, tornavam-se revoltos, encobrindo-lhe o rosto pontilhado de espinhas. Ela, delicadamente, fazia-os voltar ao lugar de origem ensaiando um falso rabo-de-cavalo que era imediatamente desfeito devido ao peso e volume daquela exuberante juba, preta como uma jabuticaba – ou como as asas da graúna, conforme diria Alencar. O frio acompanhado de uma tênue neblina fê-los sair do relento e buscar abrigo num pequeno bar. O guaraná que foi por ela aceito sem cerimônia, o reencontro marcado para o sábado seguinte naquele mesmo banquinho da praça, “às dezoito horas!” e alguns desencontros foram suas mais abrasadas lembranças.

 

Entrou na casa novamente e não mais a viu por lá. Chamou-a uma, duas vezes. Quis gritar seu nome bem alto, mas conteve-se. Saiu em direção à rua e fechou rápido o portão para que os cãezinhos não o acompanhassem. Foi até a farmácia, que fica próxima ao ponto de ônibus, na expectativa de encontrá-la. Talvez fosse buscar algum remédio para dor de cabeça. Embalde foi a procura. Ela não estava na farmácia e nem passara por lá de acordo com o balconista, um velho conhecido. Voltou para casa e esperou por ela. Caiu a noite, mas não lhe caiu a ficha. Ela não voltaria naquele dia, nem no dia seguinte. Ela jamais voltou.

 

FILIPE

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CORPO FECHADO

por feldades, em 18.04.14

Estava disposto a postar um texto menos sóbrio, debochado até, mas não me pareceu conveniente num dia como este. A Sexta-Feira Santa já foi, na devoção popular, o mais santo dos dias santificados. As mulheres não varriam casa, crianças não podiam gritar, os homens faziam jejum e não se falavam palavrões. Bem diferente de hoje, pois até os botecos, que naquele tempo ficavam fechados, estão cheios de gente tomando cachaça e comendo torresmo. Também há, por estas bandas, um estranho evento denominado “Fecha-corpo”. Multidões se dirigem a um alambique para tomar a tradicional pinguinha com poderes de dar proteção ao “devoto” ao longo do ano, desde que tomada nesta sexta-feira da Paixão. Não se sabe se, além do corpo, a tal pinga protege a alma, mas a fila é longa. Quase tão longa quanto a famosa procissão que, na tarde deste dia, soleniza a Paixão.

 

Particularmente, não costumo acompanhar procissões. Incomoda-me tanto a multidão como a lentidão de seus passos. Prefiro ficar ensimesmado noutro lugar, mas não no boteco e muito menos no alambique do “Fecha-corpo”. Contudo, devo confessar ao raro leitor, já aprontei das minhas em tão sagrado dia, e meu crime permanece sem expiação.

 

Na idade de uns treze anos, adquiri uma espingarda com a qual eu costumava disparar contra uma tábua, praticando aquilo que se denomina “tiro ao alvo”. Mas o alvo estava sempre fora do lugar, e isso fazia com que pessoas maldosas dissessem que eu era fraco na pontaria. Certo dia, pedi a meu pai autorização para dar um susto num touro do vizinho que invadia nosso roçado. Seria apenas uma “brincadeirinha”, e eu municiaria a arma com grãos de arroz ou feijão, em vez de chumbo. O velho sorriu zombeteiro duvidando do poder de fogo de meu “AR-15”. “Essa espingardinha não presta!”, foi a senha que eu esperava. Papai não autorizara expressamente, mas eu me vi livre para exercer o cívico dever de defender nossa lavoura de tão nefasto inimigo, o touro. Para tanto, usaria munição real, chumbo.

 

Antes de partir para a “cruzada”, testei a “cuspideira” mandando várias cargas naquela tábua. Aprovado seu desempenho, marchei reto e firme para o “campo de batalha” confiando, como nunca, no poder de fogo de minha bazuca. Chegando, vi o danado em franca atividade comendo sofregamente nossas espigas. Olhou-me frio, sacudiu desdenhosamente a cabeça e continuou sua refeição. Mirei seu peito e puxei o gatilho. Nada! Puxei mais uma, duas, três vezes e nada! Observei que o dispositivo onde se encaixa a espoleta quebrara, impedindo a detonação. Humilhado, recolhi a arma e me retirei. O touro, por alguma razão, deixou-se conduzir pacificamente para o sítio em que morava.

 

Tento, à minha maneira, nunca julgar os “hereges” do “Fecha-corpo”, nem os pinguços dos botecos. Nunca bebi cachaça na Paixão e nem gosto de pinga por achá-la insuportável, embora na minha incipiente juventude eu tenha tomado um ou dois porres dessa malvada. Caso me anime, descreverei esses arroubos noutra oportunidade.

 

Sei que errei e aqui me penitencio desta nefanda culpa. Vendi a espingarda tempos depois e nunca mais atentei contra a vida de animais, nem de ninguém. Mas aquele touro tinha o corpo fechado. Ah, se tinha...

 

FILIPE           

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DOIS JOSÉS

por feldades, em 11.04.14

Um José é aposentado e tem mais de oitenta anos. Gosta de jogar cartas, de escrever, ler e de navegar na internet.

O outro José também é aposentado. Tem menos de oitenta anos.

 

Um José levanta bem cedo, trata dos animaizinhos, faz seu café e suas orações e dá uma volta no quintal à procura das saúvas que costumam devorar suas plantinhas.

 

O outro José levanta cedo.

 

Um José gosta de passear. Costuma visitar um parente, um amigo ou alguém doente. Anda mais de uma légua até a igreja para não perder os dominicais ritos sagrados.  Embora goste de caminhar, não dispensa a garupa de uma moto.

 

O outro José gostaria de passear, de visitar um amigo ou parente, mas...

 

Um José não costuma receber ordens; se as recebe, refuta-as ou as ignora. Conhece bem a vida e costuma dar lições aos mais jovens de como vivê-la. Está sempre solícito para atender alguém; e quando chega um amigo ou conhecido, este não sai sem um punhadinho de prosa e um golinho de café.

 

O outro José recebe ordens e as cumpre. Não costuma receber visitas.

 

Um José gosta de viajar. De vez em quando pega um ônibus e vai visitar um filho distante ou um compadre. Participa de excursões devocionais.

 

O outro José quer viajar.

 

Um José, em suas “exacerbações”, realizou um antigo sonho: cruzou o Atlântico para conhecer o Velho Mundo.

 

O outro José também sonha, mas não se lhe permite sequer cruzar a rua.

 

Um José tem atividade política e participa da sua associação de classe como membro eleito da diretoria. Também costuma representar seus pares em seminários etc.

 

O outro José é inativo politicamente. 

 

Um José é livre para viver a vida e sonhar seus sonhos. Mesmo tendo mais de oitenta anos ninguém ousa aborrecê-lo, ninguém lhe tolhe direitos, ninguém lhe impõe deveres.

 

O outro José não está livre. Embora ainda “bem moço”, tolhem-se-lhe a vida.

 

Um José está na sua casa. É amado, respeitado pela família, prestigiado na comunidade e feliz.

O outro José está no exílio, digo, asilo.  Não é amado.

 

Há josés e marias, octogenários ou quase, plenamente ativos. São artesãos, clérigos, escritores, hortelãos, estadistas etc. Outros, porém, estão encarcerados.

 

FILIPE

 

 

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PETROBRÁS

por feldades, em 04.04.14

Não me sinto autorizado a dar palpites na vida política de meu país, seja pela minha crônica ignorância ou pela ignorância de minhas crônicas. Mas, como na democracia o direito mais palpável é o de resmungar, continuo resmungão. O agastado leitor, se ainda o tenho por aqui, poderá se descansar de mim. Sua página do facebook o espera novidadeira e é pra lá que deve ir, pois aqui é só pedreira e não pretendo ser breve.

 

Nos últimos dias a nação foi assaltada pela notícia de que Dilma Rousseff autorizara a compra de uma refinaria americana por preço aviltante, fato acontecido há seis longos anos. A aquisição foi homologada pelo Conselho de Administração da Petrobrás por ela presidido. Para este estulto que vos fala, se é verdadeira a história, falta-lhe um pedaço. Por exemplo:

 

1) Por que não divulgaram esse escândalo em 2008? Não, eu sei que não tem nada a ver com o favoritismo de Dilma nas eleições de outubro deste ano, mas por que somente agora?

 

2) Como em qualquer conselho as decisões são colegiadas, isto é, todos devem votar, por que imputar a culpa apenas na presidência?

 

3) Aquele conselho era composto por nove doutores, todos gabaritados e regiamente pagos para exercer dignamente a função. Como poderiam cometer erro tão primário?

 

4) Além daquele conselho, a Petrobrás conta com outras instâncias pelas quais passam as decisões a serem tomadas. Qual o papel desempenhado por essas comissões?

 

5) A Petrobrás é empresa de capital aberto, com operações na bolsa. Quem eram os representantes dos acionistas e o que fizeram para protegê-los?

 

6) Por que a imprensa parece esconder que, além de Dilma, o dono da Gerdau (megaempresa siderúrgica) e o presidente da editora Abril (da revista Veja) eram membros do conselho?

 

7) Por que a imprensa não propõe quebra de sigilo de todos os envolvidos em escândalos como este da Petrobrás, mas também do Metrô (Alckmin), privatizações (FHC) etc.?

 

8) Por que não se propõe  uma comissão de notáveis para investigar, julgar e condenar toda essa camarilha? Recrutar-se-iam pessoas de bem na sociedade civil, ou... em Marte.

 

9) Por que, desde sempre, o PSDB barra CPIs onde governa, mas insiste em futricar governos adversários?

 

10) Por que o PT, pródigo em assanhar com CPIs o galinheiro alheio, arruma agora todo esse alvoroço em defesa de suas  galinhas?

 

Nas atuais circunstâncias, Dilma nem precisa da oposição, pois seu partido lhe presta um ótimo serviço. Pois é, o PT está se tornando um partido como os outros. Uma pena!

 

OBS.: Pela nossa ortografia, Petrobrás sempre teve acento, mas FHC mandou excluí-lo. Para isso, só uns poucos milhões de reais foram gastos na burocracia.  Que feio, hein Fernandinho!

 

FILIPE

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