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Sob duas frondosas mangueiras, na casa de meus avós maternos, passei o melhor de minha infância. Havia por lá também pitangueira, castanheira, laranjeiras, jaqueira e até um sabugueiro, que nunca apresentou seus frutos. A árvore maior, um centenário e corpulento pé de manga espada, que ainda existe (?), era por todos o mais respeitado e também o mais assediado; enquanto seu “colega”, o pé de manga sapatinha, era desprezado – menos por mim. Seus frutos, embora mais abundantes do que os do vizinho “espadachim”, eram cheios de fiapos. “Muito fiapenta!”, reclamava alguém sempre que os experimentava. Eu, como a maioria dos esfomeados meninos da roça, fartava-me com as doces e suculentas mangas sapatinhas. Já os moleques grandões, mais espertos e ambiciosos, subiam na árvore e pegavam as primeiras e cobiçadíssimas mangas espadas. Estas, por alguma razão que somente as mangueiras sabem, sempre retardam o amadurecimento.
A jaqueira ficava num morro, não muito distante da casa. Segundo os entendidos tratava-se de jaca-boi devido à enormidade de seus frutos. De vez em quando, uma gigante daquelas era colhida e levada para casa. Posto na mesa da cozinha da vovó, aquele colosso era desventrado e de suas entranhas extraíam-se as bagas. Aquelas gordas “bananas” eram gostosamente devoradas pelas crianças – que naquele tempo eram tão abundantes quanto as frutas.
Logo à direita da estradinha de acesso à casa dos avós havia também duas majestosas palmeiras que teriam sido plantadas ainda nos “oitocentos” pela primeira esposa de meu bisavô Germano. Indiferentes a quem chegasse àquelas paragens, como que entre sussurros e acenos ao embalo do vento, aqueles dois longilíneos coqueiros pareciam entretidos numa interminável conversa que já durava mais de um século. Talvez rememorassem fatos de um passado distante, talvez zombassem de nossa diminuta estatura ou, quem sabe, amaldiçoassem o fatídico machado que não tardaria em feri-los mortalmente.
Era no verão, a estação da fartura, das frutas, quando mamãe nos levava ainda mais alegremente à casa dos avós. O calor, que já naquele tempo a todos incomodava, era por nós driblado com inocentes diabruras como os proibitivos banhos no rio. Também fazíamos excursões pelos mangais da vizinhança, mas era na casa da vovó que ficava a nossa fortuna. Embaixo das mangueiras, sentados sobre suas grossas raízes, ficávamos horas a fio chupando manga, enquanto sabiás e bem-te-vis gorjeavam ao som de uma sonolenta fonte que despejava torrencialmente sobre uma panela de ferro. Ninguém vendia as mangas, seja por falta de mercado ou por desapego mesmo. E quem mais lucrava com isso era a meninada, que, dispensando almoço e jantar, delas nos empanturrávamos.
Adulto, ainda gosto de me lambuzar de infância, embaixo de um pé de manga e junto de uma bica d’água. Manga... Que delícia!
FILIPE
Perdoe-me o arredio leitor pelo mau texto e falta de lirismo, mas não dá pra ser poético nestes tempos em que se anunciam incessantes tempestades. Como se sabe e já era previsto, o Congresso aprovou, sob o desrespeitoso título de “Lei Bernardo”, a malfadada “Lei da Palmada”. “Xuxaram” até madrinha no projeto de lei, e com direito a discurso molhado – de lágrimas! Ainda bem que desta vez não houve aquele coraçãozinho brega, que a apresentadora costuma fazer com as mãos para fãs ou desafetos.
Não entendi o porquê disso. Já temos suficientes leis restritivas aos violentos, como se pode ver no Código Penal ou noutros compêndios que abundam ao alcance de todos: curiosos, rábulas ou bacharéis. Espancar criança, jovem, adulto, velho, o gato..., é crime previsto na legislação vigente, e acréscimos configuram um blá-blá-blá legislativo, apenas.
E o Estado, essa coisa sem rosto, vai ocupando cada vez mais espaço dentro dos lares. A mãe já não podia exigir que seu “bebezinho” de treze anos arrume a cama ou lave a louça do café; nem o pai pedir ao “menininho”, também de treze, que limpe o quintal, pois “trabalho infantil é crime”, e o Conselho Tutelar é o “olho que tudo vê”. A partir de agora, se os pais quiserem apartar uma rinha dos filhos, em que haja “trocas de chutes, sopapos e puxões de cabelo”, terá que ter paciência e chamá-los carinhosamente para “conversar, conversar, conversar...”, e com muito cuidado pra não traumatizá-los. Argh!
Meu pai criou onze filhos. A todos, desde a mais tenra infância, deu carinho, serviço e umas surras de vez em quando. Uns apanharam mais, outros menos e outros mais ou menos. Ninguém virou bandido. São todos honrados trabalhadores (exceto este datilógrafo), e têm profunda veneração pelo velho (inclusive o datilógrafo). O que seria da família do seu José Lopes, caso naquele tempo ele fosse responsabilizado criminalmente por ter dado uma cintada no filho travesso?
Nas casas mantidas pelo Estado, onde estão jovens em situação de abandono, pouquíssimos são os que “dão certo na vida”, sem se enveredar pelo crime. Agora, esse mesmo Estado, comprovadamente incompetente nessa matéria, quer imiscuir-se na educação das crianças, que já têm seus provedores naturais, os pais. E num abraço impensável, esquerda e direita se entrelaçam e se unificam numa atávica intromissão na família, evocando o fascismo e o stalinismo – regimes notoriamente antagônicos no discurso, mas que foram absolutamente iguais na prática.
E assim, aos primeiros clarões do século 21, voltamos às sombras do passado, ao tempo em que o pátrio poder era desavergonhadamente açambarcado pelo Estado. Os pais estão sendo mais e mais privados de exercer sua função educativa e a sociedade vai se abastecendo de bandidos de todos os matizes. Como muitos daqueles, sem qualquer lastro moral, com assento nos Poderes da República.
Mais sábia é minha mãe que sempre dizia, quando refregava um de seus abelhudos rebentos: “Espora de galo não mata pinto!...”.
FILIPE
Publicado originalmente em 18/10/2013 - no blogdofilipemoura.com
Ele era um homem bom. Assistiu seu pai na velhice e a irmã mais velha na enfermidade. Quando menino, chegamos a ser companheiros de lida com a lavoura. Numa época em que os pequenos eram sempre desprezados, ele me tratava como adulto, fazendo-me sentir importante e feliz. Hoje, diferentemente daquele tempo, crianças não trabalham, mas também não parecem felizes.
A minha geração trabalhou duro, seja na plantação, na capina ou na colheita. Por mais penoso que fosse a labuta, com aquele senhor era bomtrabalhar, pois não tinha pressa. No milharal, ao final de cada carreira ele parava para acender o cigarro de palha - que sempre trazia no bolso ou no canto da boca -, enquanto descansávamos um pouco. Tinha a voz mansa, pausada, como o mineiro típico daquela região da Zona da Mata.
Algum proveito, ainda que inconsciente, eu queria tirar da proximidade com aquele homem. Por algum tempo fiquei encantado por uma de suas sobrinhas, o que contribuiu para que eu desistisse de ir para o seminário, onde já estava o irmão mais velho. Mas isso era segredo meu. Ninguém sabia (ou eu pensava que ninguém soubesse) que aquela mocinha “do nariz arrebitado”, conforme muitos diziam, pudesse desviar os passos de um futuro presbítero. Acho que ninguém soube mesmo, nem a sobrinha.
Mas o romance de menino passou, arrastando consigo a vocação sacerdotal - para melhor sorte do clero e da menina, pois ambos tiveram um problema a menos.
Nas minhas viagens àquelas bandas, costumava visitar o velho amigo. Porém, devido à pressa ou à preguiça, por algum tempo eu deixara de vê-lo. Da última vez, pareceu-me bem mais velho e cansado, mas conservava seu habitual bom humor traduzido na peculiar gargalhada. Nessa visita, dei-lhe um canivete multiuso. Na verdade, eu não o estava presenteando, visto que eu ganhara dele um isqueiro Vospic. Talvez seja o mesmo, de fabricação alemã, que ele usava na roça de milho para acender seu cigarro de palha no fim da carreira. Ao pegar o canivete, seus olhos luziam de contentamento. Também fiquei contente, mas temeroso, pois o velhinho manuseava com dificuldade o mimo. Suas mãos trêmulas mal conseguiam abrir a lâmina, e eu tive que lhe acudir naquele momento de “descoberta” para que não se cortasse. Isso me deixou quase arrependido. Mas, após algumas recomendações como: “Cuidado,pois isso já me machucou uma vez. Abra bem devagar!”, aquietei-me deixando-o ao lado da companheira, que também manifestara curiosidade pelo brinquedinho.
Certa vez, eu estava na cidade numa tarde quente, de mormaço. Estava desanimado para percorrer aqueles seis quilômetros, a pé e sozinho, até minha casa. Para minha alegria, logo saíra de uma vendinha o amigo. Com sua companhia, fiquei animado e começamos a conversar. Logo veio outro, um compadre seu, e a prosa ficou entre os dois. Comecei a sobrar. Pouco depois, eis que surge uma charrete. O charreteiro deu carona para os dois, e eu sobrei de vez. Tive que caminhar tristemente sozinho. Tempos depois, ao falar com o amigo desse episódio, ele se mostrou muito envergonhado e disse que nem se deu conta da minha ausência na charrete.
A mensagem de meu pai no celular dizia do falecimento. Fiquei triste, muito triste. Três dias antes, fora um tio; agora um amigo. Os dias passam, nós passamos... E a vida segue.
Tá desculpado, seu Dico, por ter me esquecido na estrada! Obrigado pela amizade e descanse em paz.
FILIPE
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