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“Vamos fazer uns exames? Depois dos cinquenta é preciso monitorar a saúde. Então, vou listar os procedimentos que você deverá realizar para a próxima consulta”. Essas foram as palavras de um médico muito simpático, embora ele não seja cubano. Após a breve entrevista, estendeu-me o formulário seguido de um aperto de mão. “Até mais”, eu disse. “Até”, respondeu o doutor, economizando o ‘mais’.
Foi uma trabalheira danada para, finalmente, eu receber um calhamaço do laboratório com os resultados. Ao conferir um por um fui me animando, porque parecia que eu estava muito bem. Caso fosse um exame de vestibular ou concurso público, eu teria excelente média, com chance de passar entre os primeiros. Mas, há um ‘porém’: em termos de exames médicos, a ‘média’ não faz sentido algum. Você tem que “tira notas boas” em todas as “matérias”, pois não adianta ter colesterol de fazer inveja num atleta olímpico, mas taxa de glicemia pré-tumular.
Alguém aí já se deparou com a palavra “citratúria”? Pois bem, ela existe e significa uma substância produzida pelo nosso organismo – e eu a tenho de sobra. E “plaqueta”? Essa é uma velha conhecida. Qualquer estudante de ciências, em séries iniciais, sabe do que se trata. Essas pequenas placas compõem o nosso sangue ao lado de leucócitos, hemácias etc. O problema é que as minhas plaquetas estão escassas e o médico está bastante preocupado – mais ainda do que o seu paciente. Agora, se a média fizesse sentido eu estaria ‘tinindo’. O excesso de citratúria supriria com folga o déficit de plaquetas, mas as coisas não funcionam assim. Dessa forma, devo repetir procedimentos, procurar especialistas.
Todos nós temos apreço pela saúde e gostaríamos de conservá-la ad infinitum. Mas a Natureza pensa e age de outra forma. Ela não se importa com nossas preocupações e nem sonha os nossos sonhos. Cada um de nós é peça de uma grande engrenagem; apresentando defeito, é logo descartada e imediatamente substituída. A Natureza zela pela espécie, apenas; quanto ao indivíduo, despreza-o sem formalidades.
Não, caro leitor, não estou me ocupando destas mal traçadas para fazer autocomiseração e não se apiede de mim. Aparentemente, estou pleno de saúde física e mental. Eu disse mental?... Ah, acho que estou bem dos miolos também. Mas o que gostaria de destacar é que nossa saúde é provisória. Mais dia menos dia, o organismo vai acender luzes amarelas, vermelhas..., até não se acenderem mais luzes. No meu caso, embora eu ainda não chegue a ser uma “árvore de Natal”, uma luzinha está piscando. Se for amarela, tá bom. Caso seja uma luz vermelha, buscarei a serenidade necessária para o desafio que ora se apresenta. Não quero pedir ao meu Senhor que remova do caminho os obstáculos, mas força para transpô-los.
São Paulo, dentre outras virtudes, ‘combateu o bom combate’; de minha parte, porém, fugi da batalha sempre que pude. Mas, agora talvez não haja rota de fuga. Desta ou doutra vez, há que se fazer a travessia – isso é o que há de mais certeiro na vida.
Nesta locomotiva, portando alegria ou tristeza, somos todos passageiros. E em cada estação, uns descem e outros sobem. Estamos de passagem, é bom lembrar, mas o mais importante é que este passeio seja bem alegre.
FILIPE
Postado originalmente no "blogdofilipemoura.com", em 02/05/2013
Sua presença silenciosa e felpuda terminou. A cadelinha serelepe, que há um mês ciceroneava os enlutados visitantes pelas ruelas do cemitério, não mais existe. Foi lá que a encontrei por ocasião do sepultamento do pai de uma amiga. Durante aquele fúnebre cortejo, parecia ser ela a única “pessoa” a estar alegre. Enquanto todos caminhavam pensativos - talvez meditando sobre a particular tragédia que é o fim de cada um -, a cadelinha passeava por entre os passantes num corre-corre sem parar. Talvez nem estivesse assim tão feliz, visto que fora recentemente abandonada e, por certo, estando à procura de seu dono.
“O que não tem remédio, remediado está”, afirma um ditado meio besta. Mas o remédio para aquela cadelinha foi a adoção. Aproximei-me dela fazendo algum gesto de bom amigo e ela deixou-se cativar por mim. Embalei-a nos braços e a conduzi ao novo lar.
Por alguns dias ela me pareceu saudável e feliz. Interagia com sua nova companheira, Pituka, como se fossem velhas conhecidas. Mas as coisas não estavam muito bem com ela. Com o organismo debilitado por uma súbita enfermidade, ela se achegava a mim sempre que eu estava neste rancho a dedilhar no computador. O olhar baço, já sem curiosidade, parecia pedir ajuda como convém a todos os animaizinhos diante do perigo. Assim, aquela criaturinha se aninhava sobre meus pés, ainda quente, mas morrente.
Por que a vida se sucumbe, às vezes tão rápida e dorida? Por que não ser diferente, como sempre queremos, principalmente para com as inocentes criaturas? Essa brevidade que assusta e apavora não nos faz melhores, mas talvez mais amargos.
Então, a cadelinha que estava bastante moribunda – uso o “bastante” como se “moribunda” já não significasse abundância de sofrimento – chorava. Neguinha chorava um choro incomum a adultos, pois os anos lhes ensinam a inutilidade da reclamação. Por isso, muitas vezes, os mais velhos padecem silentes e conformados. Somente os jovens recorrem a esse mecanismo banal e infrutífero.
Morreu Neguinha, e morrera poucos minutos antes de eu chegar. E sozinha, sem que eu pudesse ouvi-la, assisti-la em seus estertores. Os cães nos veem como deuses. Eles nos creditam o poder sobre o vento, o sol, a chuva, a vida..., sobre tudo. E Neguinha pôde presenciar o fracasso da divindade a que recorreu.
Na manhã seguinte, bem cedo, cavei-lhe cova rasa e nela depositei seu corpinho esquálido e gélido, na companhia de sua amiguinha Pituka. Esta, que à noite visitara-a quando finava, fez honras ao seu cadáver não arredando pé durante o sepultamento. Observava cada movimento da enxada, cada punhado de terra que descia sobre a companheira. E assim, sob uma roseira, está para sempre aquela “menininha” que fora alegre e faceira; que por instantes distraiu pessoas, arrebatando-as de suas funéreas preocupações quando a sepultar o ente querido.
Ainda na tarde daquele dia, chega Tokinho: um jovem “rapazinho” com cara de velho, barrigudo, ferido, faminto etc., confirmando a misteriosa transmutação da morte em vida, proporcionada pela mãe Natureza.
FILIPE
Todos são testemunhas de meu despreparo intelectual para falar de política, religião, história, até mesmo de lavoura. Se eu fosse ganhar a vida como hortelão, estaria, há anos, morando embaixo de uma árvore. A prova disso: plantei uns pés de couve, que antes me pareciam promissores, agora estão a me dar vergonha, tal o estado de penúria em que se encontram.
Para ser minimamente sensato, eu deveria ler e ouvir, apenas. Mas, eis que um teclado, pouco exigente, ostenta sua placidez e eu me atrevo a usá-lo. Portanto, seguem-se umas linhas impregnadas do nada que trago comigo, e do tudo que me atormenta neste momento.
A Comissão Nacional da Verdade acaba de apresentar seu relatório sobre os crimes da ditadura militar. Expôs uma coisa nojenta, tão fétida como a que se tornou conhecida há umas décadas: o dossiê “Brasil: Nunca Mais”. Esses crimes perpetrados pelos militares e por uma casta de civis já deveriam ser do conhecimento de todo brasileiro suficientemente alfabetizado. Mas não são, infelizmente.
Estive no Exército, quando a ditadura já “respirava por aparelhos” e ainda assim pude experimentar um pouco de seu fel. O desprezo dos milicos pelos civis era tanto, que havia na caserna o seguinte ditado: “Paisano no quartel é mulher de soldado”.
Claro que não se deve generalizar. Se havia gente fardada “do mal”, havia também “do bem”. Certa ocasião, durante um acampamento, eu estava com uma ferida infeccionada e tinha febre. Meu mal-estar era tão grande, que quase não conseguia caminhar, pressentindo desmaiar a qualquer momento. Deixei meu grupamento e fui até a barraca da enfermaria para pedir um remédio. Ao chegar, alguns oficiais e praças graduados estavam sentados, conversando amenidades. Apresentei-me batendo continência e pedi pelo socorro. Um tenente me expulsou dali, como se expulsam cães abandonados. Tamanha foi minha humilhação, que acho até que sarei. Enquanto me retirava, ouvi algo estranho, parecendo não mais ser conversa de amigos. Soube depois que um subtenente reprovara a atitude de seu superior. Mais tarde, esse homem (pai de um amigo) me disse que teve vontade de disparar contra aquele oficial iníquo.
Registro essa passagem a fim de desfazer a ideia preconceituosa de alguns, de que todo militar é mau. Da mesma forma, deve-se admitir a existência de ‘bons’ e ‘maus’ em quaisquer “tribos”: de políticos, religiosos, operários, empresários, professores etc.
Mas não há bons na tribo dos fascistas. E eles estão chegando, pregando o ódio, a divisão, a cizânia. Antes, por burrice, vileza ou por ambas, pediam a anulação da eleição de Dilma ou seu impeachment; agora, eles clamam pelo retorno dos militares, tacham suas vítimas de terroristas e fingem desconhecer o universal “direito de resistência à tirania”. Portanto, quem pegou em armas contra o regime autoritário, fê-lo exercendo esse consagrado direito. Pior é o Estado, que agiu subterraneamente, como agem os bandidos, torturando e exterminando pessoas desarmadas.
Quem defende torturadores e/ou pede a volta dos militares é ignorante ou malvado. Na primeira hipótese, merece alguma comiseração; mas na segunda, não. Deve ser execrado, como se execram os tiranos. Vade-retro, coisa-ruim!
FILIPE
Publicado originalmente no "blogdofilipemoura" em 14/06/2013
Morreu Pretinha. A cadelinha que sempre, num misto de paciência e ansiedade, nos esperava; que alegremente nos recebia; que se entristecia com nossa ausência. Morreu idosa, doente, desdentada, mas não abandonada. Um tumor lhe invadiu as entranhas cegando-a, tirando-lhe a audição, tolhendo-lhe os movimentos e fazendo com que se locomovesse às apalpadelas.
Pretinha gostava de passear. Pela manhã, bem cedo, ela me convidava para uma breve caminhada. Ainda escuro, caminhávamos pelas ruas desertas, despidas de automóveis e de gente. Enquanto eu me dirigia ao Pai em minhas preces matinais, ela se entretinha com coisinhas, que só mesmo eles, os desambiciosos cãezinhos, são capazes de valorizar. Num trote miúdo, dava breves paradas e olhadelas para trás para se certificar de minha presença. O rabinho balouçante, tal como uma batuta, parecia ditar o ritmo das passadas, vergando-se de um lado para o outro.
Houve tempos em que Pretinha fugia de minha companhia. Gostava de caminhar só. Caso eu a seguisse, tal qual uma adolescente mimada, fazia-se rebelde e corria a escapar-me às vistas. Ultimamente não. Pretinha não mais saía só. Aberto o portão, dava uns passos em direção à rua e voltava. Olhava-me fixamente, dava meia volta, parava e olhava para trás como que dizendo: “Não vai? Vamos... Sozinha eu não vou!” Quase sempre eu cedia aos seus reclamos. Nos últimos dias, entretanto, ela não se animou mais a sair. Pior: mal saía do lugar em que se encontrava, pois sempre havia uma parede ou um muro a lhe bordoar a cabeça. Perdera o senso de direção e a visão. Enfim, a intrépida cadelinha, retratada neste blog sob o título de “PRETINHA”, deu adeus. Partiu numa fria madrugada deste gélido outono. Fora sepultada sob uma roseira, ao lado de Neguinha. Ficara ali, pois ali vivera boa parte de sua “centenária” existência. Ainda, sob o olhar curioso de Pituka, fiz-lhe honras depositando uma rosa junto ao seu corpinho.
Não, solitário leitor, não me repreenda por eu tecer loas aos cães. Também não me censure nem me acuse de transformar este espaço num “necrológio de canídeos”. Os canídeos conquistaram um bom naco no meu mundo de preocupações, mas não somente eles. Os hominídeos também se fazem habituée destas páginas. Não dirá o leitor - se ainda o tenho por cá - que o assunto me é escasso e por isso me ponho a escrevinhar frivolidades. Não são frívolas estas reflexões, caro leitor, e não me falta assunto. Bem sabe que gosto de falar mal das pessoas e este espaço é pródigo neste aspecto. E só pra nós aqui: não falta gente querendo ouvir maledicências, não é mesmo?
Pois bem. Preciso encerrar este necrológio com um panegírico aos cães: Nós, seres humanos, mergulhados na mais profunda desumanidade, deveríamos aprender com essas pequenas criaturas divinamente caninas o conceito de lealdade, desapego, resignação e fidelidade. Se o homem depositasse em Deus a mesma confiança que lhe é depositada por seu cão, o mundo seria divinamente melhor.
FILIPE
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