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O CIGARRO DE PALHA EM TEMPOS DE INOCÊNCIA

por feldades, em 28.02.15

Publicado originalmente em 28/10/2011 - no blogdofilipemoura.com

 

Nunca pude me imaginar fazendo uma defesa do cigarro. Mas, se faço uma  espécie de encômio àquele que é um dos flagelos da humanidade - principalmente no último século -, alguma razão penso ter.

Lembro-me de quando vivi a minha mais longínqua infância na Zona da Mata Mineira e ia visitar o Tatão Tibúrcio, que morava com sua irmã Angelina e sua mãe dona Sarminda, que logo veio a falecer. Ia visitá-los não por bondade com os velhinhos, mas para alguma vantagem pessoal. Lá, nunca faltava um cafezinho. Embora muito amargo para o meu desde sempre “sacaroso” paladar, dona Angelina oferecia, junto ao pretinho, um pedaço de broa. Que delícia que era aquilo! Nunca mais comi broa de fubá como aquela que dona Angelina me dava, e que eu devorava de olhos arregalados na expectativa de que, assim meio esganado, ganhasse outro, mais outro e mais outro.

E o cigarro? Estava me esquecendo desse diabinho. O outro assunto é melhor, mas devo dedicar-lhe um texto mais puro, cândido mesmo, como pura e cândida era aquela doce família. Tão doce como sua broinha de fubá. Pois bem, ali todos fumavam. Angelina pitava meio escondida, pois dizia-se, naqueles tempos, que uma mulher não deveria fumar. Isso é coisa para homens! Mulheres... somente as vulgares fumavam. Dona Angelina não era vulgar, mas fumava seu cigarrinho de palha.

Gostávamos de ir lá à tardinha, quando o Tatão já tinha chegado da roça. Se papai estava conosco, não tínhamos pressa de voltar. Sozinhos, temíamos encontrar  assombração no caminho, pois naquele tempo existia mesmo. Lembro-me de que às vezes já era noite e ainda não se tinha acendido a lamparina a querosene. Ficávamos no escuro, sentados no chão da sala. Havia uns poucos bancos que não davam para todos. Como Tatão gostava de se sentar à porta junto ao seu cão Veneno, também nos amontoávamos por ali  no terreiro. Um pouco ao lado, havia um pedaço de madeira em brasa, que dona Angelina trazia do fogão. Ele pegava aquele tição, soprava e encostava nele o cigarro. Um breve clarão surgia daquele ato, iluminando seu rosto queimado de sol e sapecando um pouco sua rala barba. Para quem não sabe, cigarro de palha apaga-se ao espaço de duas ou três baforadas. Portanto, aquela era uma cena bastante recorrente. Dona Angelina se aproveitava da escuridão para também dar seus traguinhos, escondida num canto da casa.

A prosa era macia. Tatão e papai falavam sobre sua rotina de lavradores e sobre a Santa Montanha, que é uma  pequena comunidade a que freqüentávamos.  Lá pelas tantas, cedo ainda para as “hodiernas tribos”, despediam-se os velhos companheiros. Sentado ao lado de Veneno, Tatão Tibúrcio ficava ainda mais um pouco por ali. O tição já se apagara e o cigarro seria guardado num buraquinho da parede. É hora de lavar os pés e de se preparar para o repouso noturno.

FILIPE

 

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VOLUMES MORTOS

por feldades, em 20.02.15

Não, eu não conhecia “volume morto”. Conheço, desde sempre, “peso morto” – algo imprestável e que nos atravanca. Alguns “pesos mortos” obstruem o meu caminho, mas melhor não citá-los. Há também arquivo morto, uma seção onde se guardam os documentos antigos, alimento dos historiadores e de ácaros. Ângulo morto eu conheci quando ainda envergava a farda verde-oliva, e se trata de uma região escondida do campo de visão. Quando se está numa elevação no meio da mata e se avista outro morro, o vale escondido compõe o tal ângulo morto. Se há ângulo vivo, não fiquei sabendo, pois os instrutores militares não me apresentaram.

 

Mas o assunto de hoje deveria ser somente “volume morto”. Da primeira vez que ouvi essa palavra fiquei desconfiado, pensando ser algo ruim. Mas não. É o volume morto da Cantareira que tem matado a sede de muitos paulistas durante esta crise hídrica – ou seca, para não usar essa expressão besta, pretensamente glamorosa. Mas, quando o tal volume morto já começava a morrer, eis que o governo paulista – que não chega a ser um “peso vivo” – descobre, nas suas soturnas explorações, mais um “volumoso defunto”. Com essa nova reserva (meio barrenta, malcheirosa, mas água) e as estivais “águas de fevereiro”, o povo do novo semiárido poderá atravessar o próximo estio – que promete ser penosamente longo –, até que este rico estado resolva investir em reúso, cisternas ou dessalinização, como há tempos já fazem os israelenses.

 

A informação também tem o seu volume morto, algo quase inacessível. Mas para alcançá-lo, é necessário descer aos abismos, cavoucando sites, jornais impressos, televisivos e radiofônicos. Somente assim pode-se ficar sabendo pormenores do envolvimento de um grande banco (HSBC) em esquema internacional de lavagem de dinheiro. O HSBC é ligado às famílias Safra e Andrade Vieira, que, por sua vez, são ligadas aos grãos-tucanos paulistas. Aquele banco, que tem filial em Genebra, lava qualquer dinheirinho. Seja do rei de Marrocos, narcotraficantes mexicanos ou de brasileiros corruptos. E fica branquinho o danado.

 

Colunistas da Folha de S. Paulo, dentre os quais Vladimir Safatle e Kenneth Maxwell, informaram recentemente que mais de 500 bilhões de reais passaram pela filial suíça do HSBC num intervalo de tempo inferior a cinco meses. A notícia brotou de um furo no “casco” feito por um funcionário dedo-duro daquela instituição. Muito mais, porém, repousa nos subterrâneos do sistema financeiro internacional. Segundo pesquisadores, a corrupção consome cerca de 5% do PIB mundial. Isso significa que, a cada ano, 1,5 trilhão de dólares vão para o “volume morto” de paraísos fiscais, como o HSBC, ou para bolsos mais modestos, mas nem por isso limpos.

 

Ainda sobre o HSBC: O Brasil aparece como sendo o nono país que mais operou lavagem naquele banco, com milhares de brasucas envolvidos. Mas nenhum nome foi identificado na mídia, por quê? Temos competentes Ministério Público, Judiciário e TV Globo, que juntos, justa ou injustamente, desancaram uma nuvem de petistas. No entanto, um tumular silêncio cobre a plutocracia tupiniquim afundada nesse lamaçal.

 

Parafraseando George Orwell no clássico “A Revolução dos Bichos”: “No Brasil, todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”.

 

FILIPE 

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SEBASTIÃO RUFINO

por feldades, em 06.02.15

Esse era seu nome, mas era por Tatão Tibúrcio que todos o conhecíamos. Tatão morava na roça, a um quilômetro de nós, numa casinha simples, como a nossa. Ao lado da irmã, Angelina, cuidava da mãezinha, dona Sarminda, sobre quem se dizia ter mais de oitenta anos. Ficou-me a imagem daquela velhinha, negra, magrinha, sempre sentada num caixote. Passados uns tempos, ela adoeceria e se recolheria à sua cama, para eu nunca mais vê-la no seu caixote.

 

O tempo foi passando e passou dona Sarminda, ficando Tatão e Angelina. Muitas e muitas vezes iríamos ainda àquela casa. De vez em quando dávamos com “os burros n’água”, pois a Angelina não gostava de chateação e costumava não nos atender. Ainda ao longe era possível observá-la à janela, mas ao chegar, já estava bem trancadinha, escondidinha, fingindo ausência. Podíamos esgoelar, que ela não se mexia. Tarde, porém, a compreendo e eu não faria diferente.

 

O Tatão nunca fechava a porta. Todas as tardes, após chegar do roçado, ele passava as horas sentadinho ali, ao lado de Veneno, seu cão, fazendo suas orações. Vendo-nos, abria-se num sorriso e nos convidava a entrar. Chegando, cumpríamos rigorosamente um roteiro por ele traçado: ir direto ao seu quarto, onde havia um oratório, e lá fazer uma prece. Em silêncio, ele nos aguardava com indisfarçável alegria.

 

Devo confessar que, embora eu rezasse no oratório do Tatão, tinha mais fé nele do que nos seus santos. Para uma criança – ou adulto, principalmente – nada mais abstrato do que a fé. Esta parece estar associada a afeto. E como aquele homem era por nós muito querido, o objeto de sua devoção foi por todos incorporado.

 

Tatão Tibúrcio tornou-se compadre de meu pai, tendo como afilhado um de meus irmãos, a quem considerava um filho. Certa vez, fomos à sua casa bem de tardinha, e a noite veio trazendo consigo um enorme temporal, com granizo. Todos ficamos atordoados, temendo que telhado e paredes cedessem à fúria do vento. Mas o Tatão não se abalava e, mantendo no colo o afilhado, rezava. A certa hora, pegou uma pedrinha de gelo que escapara das telhas e a deu ao pequeno dizendo: “Se a criança chupar o gelo da chuva, a tempestade para”. E parou mesmo. Mas naquela noite não voltamos para casa. Dormimos amontoados numa esteira que Angelina estendera na sala de chão batido. A irmã mais velha dormiu no quarto da Angelina, e o pequeno com o padrinho, que não teve lá muita sorte não. Lá pelas tantas, o intestino do menino desandou, enlameando cama, padrinho e o sossego de todos. Mas o paciente senhor apenas disse: “Foi barriga mole, coitado”.

 

Supersticioso, Tatão usava amuleto no peito e cabeça de boi no chiqueiro. Sempre quis saber o que havia dentro daquele patuá, que trazia pendido feito medalha. “Aqui tem uma reza para minha proteção”, ele disse uma vez e me dei por satisfeito. Mas, com a caveira bovina, fui além. Tentava dissuadi-lo daquela crença ancestral, dizendo ser pecado etc., mas quem pecou fui eu. Certa feita, após uma rápida conversa, pensei tê-lo convencido a renunciar a essa “heresia”. Subi na cerca e arranquei do bambu, onde estava espetada a tal caveira, e a lancei no mato. No dia seguinte, meu pai me interpelou: “O compadre Tatão me disse, contrariado, que você tirou a cabeça de boi do chiqueiro dele. Pois trate-se de pô-la onde estava, viu?” Aquele “viu” me deu um calafrio, algo estranho, semelhante à “barriga mole” do menino aí em cima. Pus de volta lá o simpático talismã que, se não salvou os porquinhos do mau-olhado, salvou meu couro.

 

FILIPE

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