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UM SACRAMENTINO

por feldades, em 25.12.15

Ele chegou leve, suave, como uma brisa. E com essa mesma leveza, permaneceu conosco por algumas horas. Veio para ouvir. Poucas são as pessoas com essa disposição e este irmão parece ter nascido para isto: dar atenção, escutar. Com certeza ele tem suas aflições, mas as retém consigo, sem que alguém lhe ofereça ao menos uma orelha para que fale.

 

Encontrei-me com ele de manhã, amável como sempre. Levei-o à minha escola e depois o conduzi até a casa. E me pareceu que sua única curiosidade seria a de conhecer o ranchinho, onde costumo me esconder para rabiscar minhas inquietações – como “Minhas Manhãs”, recentemente postada neste blog. Mas pareceu-me decepcionado com a aceroleira. Talvez a imaginasse grande e frondosa, mas o que se viu não passa de um arbusto. O suficiente, no entanto, para compor um retalho de natureza em estado bruto, com tronco, musgos, folhagens e asas. É essa paisagem que desanuvia as retinas e embala os delírios deste cronista insípido. Conheceu também a matilha da casa:  a curiosa Pituka, o rabugento Tokinho e o desconfiado Tiziu. Ainda que não demonstrasse intimidade, não denotou repulsa aos cães. Já está bom.

 

Minimalista na mesa, seu prato daria para alimentar, com sobra, um recém-nascido. Com tão pouco rango, pensei: talvez as orações lhe completem a refeição. “Meu bucho é pequeno. Como pouco, mas gosto de comer sempre”, diz para pôr fim a eventuais insistências dos anfitriões. Com isso, explica que gosta de “beliscar”. Talvez, nesse aspecto, seja o único que tenha puxado a mãe. Mamãe come pouquinho durante as refeições, mas, na surdina, sempre dá suas “beliscadas”. Contudo ainda não pude flagrá-lo em furtivas mastigadas. Ao sair, quis fazer-lhe um lanche para a viagem, e ele me orientou: “Pega um pãozinho de sal (pão francês), abre e bota uns ‘trenzinhos’ dentro, que ele fica que nem um embornalzinho, fechadinho”.

 

Da irmandade, é o mais sábio e também o mais econômico na prosa. Caso esteja numa rodinha em que se discuta algo, permanece atento e em silêncio. Não se lhe despertando interesse, retira-se à francesa. Instado a dar opinião, diz poucas e acertadas palavras.

 

Culto, grande conhecedor de teologia, não se mete a responder perguntas sobre algo que julga não dominar. “Ih, menino, sei falar sobre esse ‘trem’ não. Isso é assunto pra quem estudou.” Nas reuniões da Congregação, da qual é superior-geral, se instado a dar palpite, costuma dizer aos conselheiros: “Vamos debater a questão para decidir. Estou aqui para ouvir quem entende e aprender, porque sou apenas um ‘cura de aldeia’. Até pouco tempo, eu era capinadô de roça lá em Guiricema!”

 

Diferentemente de mim, não acumula nada. O que não está usando, passa para outros; se não vai ler o jornal velho, descarta; a roupa tá apertada, manda pra frente – outro usa. Dessa forma, seu guarda-roupa é enxuto, sua estante está sempre arrumadinha, a gaveta organizada. Nada semelhante a esta mesa sobre a qual me apoio – repleta de livros, jornais, sacolas com coisas..., uma bagunça! Aprendi que nossa cabeça tem a forma da mesa, do guarda-roupa ou da pia. Se está organizada, a mente também; se está bagunçada, melhor buscar tratamento. (...?!)

 

O Sacramentino, mais do que líder, é um “oráculo” da Congregação e também da família. Percorre milhares de milhas para debelar perrengues entre confrades ou rusgas entre membros de seu clã. Em breve, singrará o Atlântico e aportará na África. Assim, este incansável missionário segue firme no seu pastoreio. Peregrinando por terras e mares, leva a estes e a ultramarinos povos um pouco de alegria e de paz.

 

FILIPE

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O SEMEADOR

por feldades, em 11.12.15

“Eu sou o semeador
Vou semeando a Palavra do Senhor”

 

A estrofe acima é de “O Semeador”, uma das inúmeras composições de Luiz Gonzaga de Souza, o Luizinho Cristiano, que nos deixou recentemente.

 

Luizinho foi um importante personagem na minha história, quando da passagem da infância para adolescência. Naquele tempo, em Vilas Boas, distrito da pequena e amável Guiricema, meu pai liderou um movimento de evangelização promovendo umas tais “reuniões de equipe”. O nosso grupo era formado pelos moradores do “Córrego dos Lopes” e se estendia para além do tal “córrego”, alcançando o “Cabo Frio”, no alto da montanha, onde morava meu tio-avô Sebastião de Moura. Às vezes íamos até a “Lambança”, comunidade onde morava a família Soriano. Nossos encontros eram nas noites de quinta-feira ou nas tardes de domingo, quando se reuniam dezenas de pessoas para orações, leitura do Evangelho, café com broa e muita música. O Luizinho, com seu violão, era o principal animador. Havia outros músicos, mas este nosso amigo era especial, uma espécie de maestro, o mestre do canto e das cordas.

 

O violão do Luizinho era quase artesanal, tinha cavilhas de madeira e cordas emendadas. Era comum vê-lo afinando-o ao intervalo de poucas músicas, pois as tais cavilhas não sustentavam a corda na tração necessária e o “bicho” desafinava em meio a uma dedilhada. Generoso, não tinha ciúmes de seu instrumento e o deixava conosco para que pudéssemos brincar à vontade. Ah, mas será que era por isso que as cordas se arrebentavam?...

 

Como naqueles longínquos anos setenta não tínhamos rádio, o Luizinho era a nossa única fonte musical. Dele, ouvíamos, além das canções do padre Zezinho, músicas do cancioneiro popular como a Jovem Guarda e as sertanejas de raiz. Através dele, conheci Jacó e Jacozinho, Tonico e Tinoco, Zé Fortuna, João Pacífico, Teddy Vieira etc. Sempre após as rezas, quando as mulheres e crianças iam se dispersando, nós, a molecadinha mais graúda, ficávamos para trás a fim de ouvir o seresteiro. Pedíamos: “Canta esta...”, cantava. “Canta aquela assim: ‘lá-rá-lá-rá’”, cantava também. E assim, o nosso menestrel ia até altas horas. Incrível, ele sabia de cor centenas, senão milhares de canções. Ouvindo apenas uma vez, já memorizava para sempre. Dominava também um vasto repertório de piadas, charadas e muito mais. O Luizinho era um artista do povo e por onde passava, semeava sua alegria cantando, tocando e contando piada.

 

Ah, mas não era mole a vida na ditadura! O governo militar, com seu ‘milagre econômico’, não foi nada milagroso para o povo da roça. Escassez e carestia era nosso cardápio e para o amigo Luizinho as coisas não foram melhores. Recém-casado e com dificuldades, papai chegou a socorrê-lo com uma pequena lata de gordura de porco, pois não tinha como temperar a comida.

 

Embora sem ter estudado música, Luizinho era um virtuose. Homem de raro talento, tentou de tudo na vida. Foi lavrador, padeiro, marceneiro, mas nunca viveu de sua arte. Ultimamente, andava preocupado com uma cirurgia que faria e tentava se aposentar. Partiu, aos sessenta e cinco, deixando silêncio, saudade e uma exuberante sementeira.

 

Vai, Luizinho, canta para os anjos e continua a semeadura. E não esqueças do teu violão!

 

NOTA: Na seção “comentários”, pus a letra da música que celebriza o nosso ‘semeador’ e que marcou uma geração de camponeses guiricemenses.

 

FILIPE

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