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Estamos no natalino mês de dezembro, que já se vai com seu Natal que se tornou tão banal, quase fatal. Com seus abraços tão falsos!
Então é preciso abrir para balanço – e não fechar, como se fecham os armazéns para arranjos contábeis. É preciso avaliar o ano que finda, num improvável retrospecto.
O ano foi duro, pouco frutuoso. Se não houve tantos frutos, houve flores e folhas e raízes, que adentram o solo pouco fértil de uma pedregosa existência.
Neste ano, houve tropeços nas relações. E rupturas. Mas novos vínculos suturam velhas chagas.
A vida costuma ser um deserto sem oásis nem bordas. Vagando-se nessas areias, perdemo-nos em miragens – o enganador efeito óptico da luz que se refrata e confunde.
As relações humanas, familiares ou não, têm muito desse deserto e de suas miragens. Tem a aridez da areia movediça, que traga, que naufraga.
Quantas máscaras... Por que mascarar-se?... Melhor mostrar a pele ferida, impiedosamente maculada, mas nua.
Contudo, é imperioso pôr a máscara, esconder-se e se apresentar ridiculamente maldisfarçado. Por que assim, de forma tão mesquinha? Qual o porquê dessa vileza?
Ah, o ano foi duro! Muitos foram os desafios e poucos os resultados. Mas houve tentativa de acertar, de errar por um caminho... perder-se nele.
Porque há sempre um muro à frente. Como transpor o muro? Não se pula o muro. Não se derruba o muro. O muro é duro!
Houve vontade de sair, de viajar... divagar bem devagar. Mas a vontade foi acabando, como acabam os sonhos após longo sono.
Há de se abrir para balanço um ano que parece não ter acontecido. E que finda, deixando uma parte incrustada na memória; a outra parte é volátil, como voláteis são nossos muitos planos.
Se nascemos e finamos solitariamente e a vida é um contínuo flerte com a solidão, dois mil e dezesseis valeu pelo que dele vivi tão só.
Mas dois mil e dezessete é apenas uma promessa. Então, que seja promissor o ano que se anuncia!
FILIPE
Ligeiramente atrasado, cheguei às cinco e quarenta da manhã à simpática cidade paranaense de Ponta Grossa, mas ele já me esperava na rodoviária. Não o vi de imediato, pois eu estava meio zonzo após tantas horas no “porão” daquele ônibus e minha coluna gemia devido ao desconforto da “segunda classe”.
O reencontro foi caloroso, como convém a velhos amigos que se reveem. Entramos no carro, passamos num posto para abastecer e comprar erva-mate – uma “Bitumirim” desbotada, mas saborosa. “Esta é o povão que usa”, disse-me um alegroso e todo prosa Freizinho.
Entramos no convento quando se celebrava a primeira missa. Paramos diante da capela, toda decorada para o Natal e fiquei embevecido com tanta beleza. O chão coberto de feno compunha um autêntico estábulo. As cadeiras e as paredes revestidas de papel pardo davam a impressão de se estar numa gruta formada por um vasto rochedo. E ainda os frades com seus batinões cinza... Aquele cenário me fez retroceder mil anos e me vi em plena Idade Média – uma página viva de Umberto Eco, mas sem a dramaticidade de “O Nome da Rosa”.
No entorno do convento, lírios, pinheiros e muitos pássaros. São juritis, tico-ticos, bem-te-vis, anus, canários e “anônimos”, que cantam e encantam num incessante louvor. No pátio interno, entre as galerias de celas, uma parreira exibe incipientes cachos. Próximo à minha janela, um sino no alto de uma torre anuncia desde as Laudes até a última prece que precede o repouso. Contemplei aquele sino e tive vontade de puxar a corda e badalar, badalar, badalar.
Há também um eremitério dentro de um bosque e o Freizinho me levou àquele pedacinho do Éden. É uma pequena e rústica capela com três bancos de madeira bruta desdobrada, um estreito corredor como aposento e tendo ao fundo um banheirinho – tudo o que um eremita necessita para viver ‘holisticamente’ integrado a Deus e à natureza. Na frente da capela, há uma torre com um sino (que tangi diversas vezes) e, nos fundos, uma aconchegante varandinha com fogão a lenha. O Freizinho acendeu o fogo – ou a fumaça, pois houve mais fumaça do que fogo. A água da chaleira chegou a chiar, mas não a usei no chimarrão. Tivemos que voltar devido aos inúmeros compromissos que esperavam pelo frei.
Mas a vida desse franciscano não tem nada dos floreios bucólicos que esta crônica sugere. Amante das artes, da literatura, da vida acadêmica e campestre, ele não tem tempo para devaneios poéticos. Acorda sempre de madrugadinha e seu dia não tem hora para terminar. Como um típico socorrista, ele tem ao longo do dia uma barafunda de crises para resolver. Crises conjugais, de relacionamento, existenciais, familiares, de fé etc. Como se não fosse suficiente a faina diária e as viagens pelo País – todas de ônibus, porque o Freizinho tem pavor dos ares –, ele ainda dirige os trabalhos de uma comunidade assistencial a moradores de rua.
Já é quase meia-noite, quando o Freizinho começava a celebrar na Comunidade Deus Pai para um público formado basicamente de mendigos. Após a celebração, uma perua percorrerá a cidade à procura de moradores de rua a fim de lhes servir sopa com cachorro quente. Animado por um violão, o grupo de voluntários dança, cantando músicas diversas, sendo “Zaqueu” o hit preferido. Dentre os “clientes”, há um maluco, que se esbofeteia o tempo todo; outro que recusa a sopa e nos afugenta; mais à frente, quatro homens e uma cadelinha dividem calçada, cobertores e o lanche. A cachorrinha coça suas pulgas enquanto seus donos tomam sopa em caixa longa-vida. Mas a caravana segue viagem madrugada adentro, enquanto o Freizinho e eu caímos fora. O cansaço venceu! Às três horas e vinte e três minutos, entrei em minha cela; às seis, o Freizinho já está com seus confrades na capela rezando as Laudes!
A biologia nos dá irmãos, os amigos nós conquistamos, mas poucos têm a graça de ter um irmão que é também amigo. Amigo é alguém com quem se partilha angústias, e de quem se aceita eventuais reprimendas sem que fiquem mágoas. E o Freizinho é-me singularmente irmão e amigo. Obrigado, mano!
FILIPE
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