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Tencionava escrever sobre minha recente visita aos pais, mas fui atropelado pelo noticiário e me desviei daquela rota. Com a licença do arredio e voluntarioso leitor, vou nesta.
O Brasil está dominado por criminosos – de gravatas ou bermudões – desde que aqui chegaram as gravatas e os bermudões. Engravatado preso quase não há, mas pés de chinelo sob ferros encontram-se à farta. E estes despertaram o novo ano com diversas rebeliões no Norte e Nordeste do País. Discutem as possíveis motivações, com bem fundamentadas teses, os doutores nos telejornais e os bebuns encostados no balcão ensebado do bar do Barba. Embora não sendo doutor nem bebum, quero opinar sobre o que acontece, mas “posso não lhe agradar”.
Ouço dizer que no Brasil há presos em excesso, que o ideal é fechar cadeias, que estas são universidades do crime e não recuperam ninguém, que o sistema é ‘punitivista’ e que as rebeliões que ora acontecem são devido à superlotação. Mas como até a “mãe do Michelzinho” deve saber, essa não é uma guerra contra o Estado, mas entre facções.
Nossas prisões são similares às masmorras medievais e disso ninguém discorda. Um preso, que tem custo mensal superior a dois salários mínimos e meio, deveria ser tratado com mais dignidade. Por outro lado, não se prende muito como dizem – prende-se mal. Quase metade dos cerca de 640 mil apenados não tem sentença judicial e é composta por autores de pequenos delitos como furtos ou posse de parcas quantidades de droga. Outra parte é arraia-miúda sem advogado ou com penas cumpridas, mas sem alvará de soltura. Também há aqueles que cumprem pena por pensões alimentícias, e o caso de um senhor de 65 anos, trancado com bandidos por não pagar pensão a um neto, tornou-se emblemático.
Se o Brasil quiser mesmo combater o crime, terá que construir mais cadeias, pois as que temos são insuficientes. E o raro leitor, inteligente que é, há de concordar comigo. Aos números: No Brasil, nos últimos vinte anos, UM MILHÃO de pessoas foram assassinadas; somados os números de estupros e assassinatos, chegam-se a obscenos cem mil casos por ano; a taxa de assaltos por aqui é o dobro da média mundial. Se a justiça fosse efetiva, daria para pôr em cana ao menos cem mil facínoras desse naipe todos os anos, sem contar a grã-finagem composta de corruptos e corruptores. Teria que ser trancafiado todo indivíduo que ameace a sociedade, independentemente da idade ou classe social.
Mas está tudo errado. Recentemente houve homicidas postos em liberdade por não haver vagas nas penitenciárias... Pergunto: precisamos ou não de mais cadeias? Claro que sim. Para que possamos andar em liberdade pelas ruas e praças.
E não me venham com esse "temerário-papo-coxinha" de Exército nas ruas! As Forças Armadas existem para garantir o Estado de Direito, protegendo fronteiras, mas não têm vocação nem treinamento para policiamento. Os governos estaduais que cuidem de suas polícias, capacitando-as e lhes dando condições de exercer sua função.
FILIPE
“Felipe, a Maria do Antônio Moisés faleceu”. Assim meu pai escreveu em minha página do ‘feice’, mas poucas pessoas sabem de quem se trata.
A Maria do Antônio Moisés, que antes tínhamos por ‘Mariazinha’, mudara-se com a família no início dos anos setenta para uma casinha próxima de nós, na zona rural de Guiricema. Era uma mocinha de uns vinte anos e tinha três irmãos: João, com três ou quatro anos; o Zé, meu companheiro de infância e de traquinagens; e Teresa, sua inseparável companheira. O pai era o Antônio Procópio, conhecido por Antônio Moisés – a quem os íntimos chamavam de Antônio Cabrito – e sua mãe era a dona Fiinha, cujo nome de batismo eu nunca soube.
Mariazinha, filha primogênita de humildes camponeses, não desfrutou da infância nem da mocidade. Devido às circunstâncias desfavoráveis em que foi criada, não frequentou escola, dedicando-se desde cedo ao penoso trabalho na lavoura onde roçava, plantava, capinava etc. Assim, em terras alheias que a família arrendava, cultivava arroz, feijão, milho, batata, abóbora e ainda cuidava de uma horta. Descalça, trabalhava com sol, chuva, espinhos, ‘formiga-lava-pés’ e outras “belezuras”, que somente o lavrador conhece.
Mulher de poucas palavras, Mariazinha era observadora e interrogativa, esboçando sempre um sorriso meio desconfiado. Durante a minha meninice, via nela uma autoridade de tia. Por isso, nas vezes em que ralhava com o irmão, uns fiapos daquela bronca eu achava que era para mim.
Com Mariazinha, fui padrinho de minha irmã caçula e ela tornou-se comadre de meu pai, reforçando nossos laços de amizade. Naquela oportunidade, também fomos padrinhos do João, seu irmão caçula e me tornei compadre de seus pais. Achava estranho, eu, ainda moleque, sendo solenemente chamado de “compadre Filipe” pelo seu Antônio Moisés e dona Fiinha...
Ultimamente adquiri o hábito visitar a Teresa, mas nunca fui à casa da Mariazinha. Teresa, mais prosa do que a irmã, gosta de escarafunchar fatos de minha infância, as belas histórias do tempo da roça, recordando algo pitoresco que já esqueci.
Da última vez, Teresa contou: “Cê lembra da leitoa, que você levava dentro de um saco e nós pedimos pra você mostrar? Você abriu o saco e a leitoa escapou, afundando no brejo... Aí você disse: ‘Bom, vocês pediram para ver a leitoa e eu mostrei. Agora me ajudem a pegar a leitoa!’ Foi um corre-corre danado, custou, mas conseguimos pegar a danada de volta!...”
Mas a Mariazinha faleceu repentinamente, conforme escreveu meu pai. Tinha sessenta e seis anos e uma vida tranquila ao lado do esposo. Estava aposentada, morava na cidadezinha e gozava do conforto urbano, algo que jamais sonhara durante sua vida camponesa.
O ‘caso da leitoa’ é apenas uma de muitas histórias. Outras poderão ser contadas pela Teresa, mas não pela Mariazinha, que deixou uma grande lacuna na memória de minha família. Com ela, foi-se um arquivo que jamais poderemos abrir.
FILIPE
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