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Servi o Exército por dois anos e, apesar da ditadura militar que infelicitava a nação à época, trago boas recordações da caserna. Lá, conheci pessoas íntegras, generosas, que muito me ensinaram. A disciplina era dura, mas não havia privilégios para os mais abastados. Para o bem ou para o mal, soldado era tratado como tal, sem distinção de cor, classe ou sobrenome. Havia uma frase muito batida, que o sargento repetia aos conscritos nos primeiros dias: “Aqui é o lugar onde o filho chora e a mãe não escuta!” Não me lembro se chorei no quartel. Devo ter chorado, mas de saudade de alguém, que não escutou, como também minha mãe não escutara – proibida que estava pelo sargento disciplinador.
São impressionantes as oportunidades encontradas por quem ingressa nas Forças Armadas. Para o caboclo estudioso e responsável, uma estradinha de sucesso pode ser aberta, e uma carreira, ainda que modesta, pode surgir-lhe alvissareira. Conheci muitos militares graduados oriundos de comunidades carentes, que se ergueram através do empenho pessoal. Há pouco tempo, Dilma Rousseff (alguém se lembra dela?...) deixou ainda mais auspiciosa a carreira militar, garantindo que mulheres ingressem como oficiais combatentes nas três Armas. Antes, elas poderiam exercer apenas funções burocráticas.
Gosto dos militares e sei o quanto eles nos são uteis. Tive como capelão o padre Gaio, um capitão amável, que nos devotava carinho quase paternal. Gostava de brincar conosco, dizendo que nunca seria papa, porque não poderia se tornar um “papagaio”. Tinha também um cabo cozinheiro e gorducho, muito bonzinho. Disseram-me que ele colaborava com os soldados, quando estes deveriam mandar fezes ao laboratório de análises clínicas. Não conseguindo colher o material, alguns infelizes recorriam àquele benfeitor, que fornecia o “produto” à farta.
Mas tanto lá como cá, maus-caracteres existem e são abundantes. Estes estão nas empresas, igrejas, governos ou repartições públicas, fazendo os estragos de sempre. Quero, com isso, afirmar que não se deve apostar em determinado segmento da sociedade – no caso, os militares – para salvar a pátria, porque salvacionismo só existe nas mentes ingênuas ou insanas.
Recentemente, numa loja maçônica, um general da ativa defendeu a intervenção militar no país. Antes, esse mesmo oficial perdera um importante cargo devido a declarações desairosas. Mas agora, tendo como chefe o “denunciado”, não foi punido. Temeroso, o “temerário” não teve a hombridade de ao menos advertir seu subordinado. Nem uma nota, um bilhete, um rabisco qualquer, ele teve coragem de apresentar à nação, reprovando o malfeito do subordinado.
Mais recentemente, outro general, agora num templo católico, foi na mesma linha daquele. Em homilia transmitida pela TV, o Arcebispo Militar do Brasil, um “três estrelas”, exaltou a bravura, a competência e a honestidade de seus colegas fardados, confiando a eles a missão de tirar o Brasil do lamaçal em que se encontra. De um bispo católico, eventualmente incardinado capelão militar, espera-se o pacifismo; jamais o belicismo de um aiatolá.
Os militares são sempre imprescindíveis, mas desde que permaneçam dentro de seu “quadradinho constitucional”. Os civis, bem ou mal, vamos desentortando os caminhos através do voto. E sem a tutela de generais, por favor!
FILIPE
“Desculpa pelo mal-entendido, professor! Eu estava errado aquela vez, foi mal...” Pasmo, ouvi do rapaz aquele pedido de desculpas, que aceitei sem delongas. Disse-lhe ainda que o quero feliz e que todos os dias rezo por ele – como sempre rezo pelas pessoas que me dão alegria ou tristeza. Ele respondeu: “Eu também, professor”. Sem saber se ele rezava por mim ou me desejava felicidade, agradeci de pronto e sinceramente tamanha generosidade.
O episódio aludido pelo rapaz não foi apenas um simples ‘mal-entendido’, mas algo bem mais desagradável. Há tempos, sofri dele uma agressão verbal na sala de aula seguida de ameaças etc. Colérico, reagi como pude, e se arma eu portasse naquele momento, uma história bem diferente desta estaria para ser contada. Mas a cura para essas e outras chagas encontrei nas preces que faço diariamente.
Todos passamos por dolorosos conflitos, quando nos afloram os mais inconfessáveis ímpetos homicidas, mas não podemos sucumbir à força da nossa natureza nada angelical. Usemos a razão ou, doutra forma, trocaremos a civilização pela barbárie.
Recentemente, uma vibrante manchete ocupou várias mídias, louvando a "bem-sucedida” operação policial que deu cabo de dez bandidos. A fatídica quadrilha ousara assaltar uma residência num bairro da grã-finagem paulistana, e se deu mal. Falou-se de “intensa troca de tiros” entre polícia e bandidos. O governador publicou nota em apoio à operação, afirmando que “uma quadrilha foi desmantelada”, e que “quem porta fuzil não quer conversar”.
De início, quis concordar com o governador, mas só “de início”, porque não dá para aceitar aquele tipo de operação como “política de Estado”, principalmente de quem pleiteia ser presidente da República. Explico.
Primeiro: não houve “troca de tiros”, porque, felizmente, nenhum policial foi baleado. Já no lado do ‘inimigo’, uma sinistra média de quatorze perfurações por cadáver – a maior parte com sinais claros de execução. Foram 139 tiros certeiros em 10 homens, alguns com mais de trinta ‘buracos’; quem recebeu apenas um tiro, teve-o na nuca. Segundo: a quadrilha não foi desmantelada. As autoridades sabem que os mentores do crime nem sempre participam de ação armada. Aqueles que morrem não passam de “soldados” de uma organização sofisticadamente hierarquizada. As “altas patentes” foram preservadas com a morte de seus comandados. Estes poderiam entregar seus chefes, porque a moda agora é “delação premiada” – alguém aí já ouviu falar dela?
O caso “Morumbi” é notícia velha. Ninguém quer saber mais disso nem do que acontece nos grotões do país, quando lideranças camponesas são exterminadas como moscas. Índios, quilombolas, sindicalistas são perseguidos e dizimados sem que ninguém os proteja.
A nova “política de segurança” implantada por Michel Miguel, o Pequeno, é de morte e não de vida. Além de tantas 'temeridades', a triste figura acaba de liberar a famosa pistola Taurus Millenium 9 mm, uma das armas mais letais do mundo, capaz de matar até três pessoas com um único tiro. Policiais de folga poderão portá-la, mas apenas os policiais. Mas alguém precisa avisar os bandidos que eles não têm autorização... E nada de ficar chupando o dedinho, cobiçando a arma do meganha, entendeu?...
“Não matarás!” Já li isso em algum lugar, mas faz muito tempo.
FILIPE
“E o ‘Pica-Fumo’, é bacana com vocês? Cadê ele?”, perguntou-me o soldado Costa numa tarde do ano de 1980. Eu tirava guarda no pátio das viaturas do Esquadrão de Cavalaria, enquanto ele estava numa janela do Quartel-General, um prédio vizinho. Não sabia que seu pai, meu chefe de seção e que foi carinhosamente chamado de ‘Pica-Fumo’, era esposo de uma prima de minha mãe. A partir desse brevíssimo diálogo, estreitei laços com aquela família e passei a integrá-la. Mas o Costa, embora simpático, era de poucas palavras, e nas vezes em que fui à sua casa, pouco conversávamos. Sempre havia muita gente por lá e eu me ocupava mais com os assuntos da mãe, que gostava de recordar antigas histórias de sua terra natal.
Naqueles tempos de Exército, tentei seguir carreira militar e ingressei num curso de cabo. Durante um acampamento, sendo designado chefe de uma patrulha de reconhecimento, eu e meus comandados vagueamos a noite pelo matagal à procura do inimigo, mas fomos subitamente abatidos por uma rajada de metralhadora – que na verdade era uma matraca. No balanço da operação, um furibundo sargento me repreendeu: “Você perdeu todos os seus homens na emboscada! Sua patrulha foi massacrada!” “Sim, senhor!”, respondi. Mas o sargento não se contentava com o meu “sim, senhor” e repetia a cantilena. Daí, já impaciente, retruquei: “Ninguém morreu, sargento. Eu e meus companheiros estamos vivos, porque foi tiro de festim!” Com esta minha ousadia verbal, o homem queria me partir ao meio, mas se conteve. Houve mais: durante um desfile, tive mal-estar e meus olhos turvaram-se. Pedi para sair de forma, mas o sargento não permitiu. “Soldado cai, mas não sai!”. Sai de forma e me sentei na calçada. Recobrados os ânimos, corri e alcancei a tropa, que já ia longe. Chegando, apresentei-me ao sargento, que me recebeu calado, mas com “cara de cão”.
E assim, a “derrota militar” no acampamento, a rebeldia no desfile e as soníferas aulas teóricas depois do almoço selaram minha desventura. Para sorte minha ou da corporação, pus fim num alentado sonho verde-oliva de “homem das armas”.
Mas o Costa, que era um sujeito sabido, se deu bem. Com pouco tempo ele se tornou cabo-enfermeiro e só não avançou na carreira porque não quis. Era competente e poderia ter chegado a oficial, como seu pai.
Numa daquelas visitas à família do Costa, conheci seu irmão. Era um sujeito magro, cabeludo, barbudo – um riponga. Com ele, aprendi a tomar chimarrão, ouvir MPB e apreciar literatura. A música, em volume baixo, temperava sua prosa, que também tinha lá uns tons melódicos. Tornei-me amigo desse magricela e passei a ter menos contato com o Costa.
O tempo passou e nas muitas vezes que voltei àquela casa, nunca mais vi o Costa, que voltou a ser Sérgio, passando a ter outras ocupações: deixara a farda, casara e cuidava agora da família.
A notícia de sua morte foi um grande baque. Não sabendo de sua enfermidade, não rezei pela sua recuperação. Descanse em paz, Sérgio! Para mim você continua sendo o bom “soldado Costa”.
FILIPE
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