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VIDAS INTERROMPIDAS*

por feldades, em 31.08.18

Por uma estranha razão, o ‘aborto’ voltou a dominar o debate nacional. O tema, que deveria ser assunto do Legislativo, entrou na agenda do Judiciário e daí veio a inflamar “lares e bares”. Não me parece tarefa fácil defender algo tão delicado como a “interrupção de uma vida”, até porque a decisão de abortar só pode ser tomada por alguém que teve a felicidade de não ter sido abortado.

 

Dentre os vários artigos publicados sobre o aborto, os jornais trouxeram recentemente alguns números inquietantes. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, 14% das mulheres ‘não mães’ não desejam ter filhos; 14% dos brasileiros defendem o aborto em qualquer situação; 59% dos entrevistados não querem mudança na lei – que permite aborto em alguns casos; mas 58% das pessoas ouvidas acham que a mulher que fez aborto deve ir para a cadeia. Essas estatísticas, sombrias e desconexas, causam-me profundo mal-estar.

 

Que a vida surge a partir de um óvulo fecundado parece ser consenso entre pessoas minimamente sensatas. Mas a vida embrionária não é levada a sério por quem adota a expressão “interrupção da gravidez” – um eufemismo grotesco para “aborto”. Ainda que não se possa concordar com a “interrupção da gravidez”, é preciso debater o assunto, porque a mulher que pretende fazer aborto costuma estar vivendo uma situação dramática: perseguições por uma gravidez não planejada, enfermidade grave ou estupro. As vítimas de predadores sexuais merecem especial atenção e jamais poderiam ser julgadas nem condenadas, mas acompanhadas. Nesses casos a Igreja, que sempre se posiciona contra o aborto, deve oferecer compreensão e misericórdia.

 

Mas o grande desafio é encontrar o “caminho do meio”, que parece não existir. De um lado estão setores progressistas da sociedade, que lutam pelo direito à vida dos empobrecidos, mas empunham a bandeira do aborto, negando esses mesmos direitos aos nascituros. Do outro lado dessa trincheira ideológica e contra o aborto, estão os carcomidos conservadores. Estes, que defendem ferrenhamente a vida intrauterina, não movem uma pluma em favor dos “nascidos” pobres, negando dignidade e sentenciando à morte prematura os deserdados dos bem terrenos. 

                                                                                                     (*) Publicado na Tribuna de Amparo - edição de hoje.

 

FILIPE

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HONESTIDADE

por feldades, em 18.08.18

À noitinha, ele parou em frente ao portão, mas não tocou a campainha. Bateu palmas. “Oi, eu sou morador de rua e vim pedir ‘um real’. Ah, primeiramente parabéns porque hoje é Dia dos Pais. O senhor é pai?” “Sim, sou pai, mas dinheiro... um real? Sei não...” “Me dá um real, moço. Eu sou um desgraçado de um pingaiado e quero comprar uma cachaça, mas não tenho um puto no bolso! sendo sincero, pois mentir é feio. É pra comprar pinga mesmo.” “Eu vou lhe dar dois reais.” Peguei uma cédula de dois reais, examinei com cuidado para ver se era mesmo de ‘dois reais’ e dei ao pedinte. “Olha, eu fico muito agradecido. fez uma caridade prum morador de rua. Eu tava bebendo este perfume aqui (ergueu algo semelhante a um frasco), porque é difícil ficar sem a danada. Obrigado mesmo. Valeu.”

 

O homem não foi apenas sincero, foi honesto também. Não trapaceou dizendo estar há uma semana sem comer, que a mulher está acamada há meses e que o filho acaba de ser atropelado por um drone. Não, ele apenas queria comprar um corotinho de pinga e nada mais. De minha parte, nunca havia pensado que ‘dois reais’ pudessem fazer a fortuna de alguém, dando-lhe tanta alegria.

 

Refleti detidamente sobre o episódio acima e aproveito a inexpressividade deste blog, onde posso escrever bobagens sem ser incomodado, para fazer uma confidência: eu não sou honesto. Ou melhor, já fui desonesto. Na minha infância, furtei laranjas do quintal de vizinhos, comi furtivamente doces de uma tia, peguei muitas bananas-maçãs da despensa de meus avós e invadi uma roça para pegar melancias. O pior é que neste último delito eu “pequei em vão”, pois as melancias estavam verdes. Bem mais tarde, já adulto e trabalhando nos Correios, eu peguei selos que se soltavam das correspondências e os aproveitava nas minhas cartas, que eu enviava sem custo para parentes e amigos. Arrependido, procurei o chefe para denunciar, não o meu crime, mas a tinta ruim que usavam nos carimbos, que era facilmente apagada com uma borracha. O chefe não deu bola e eu, contrariado, continuei na delinquência, economizando selos por mais algum tempo.

 

A minha desonestidade, contudo, são águas passadas. Esta semana, indo ao caixa eletrônico para fazer um pequeno saque, a máquina tropeçou na contagem e acabou me dando uma gorjeta de trinta reais. Trinta reais é uma baita grana, capaz de aquecer um sem-número de pingaiados com uma batelada de “corotinhos de felicidade”. E eu seria, pela definição daquele “meu” morador de rua, um homem afortunado. Mas não. No dia seguinte, liguei para o banco e pedi instruções para devolver a grana que não me pertence. A moça, inicialmente pasma, finalizou agradecida, dizendo que eu terei que procurar a agência. E já me aborreço, porque preciso pegar filas, senhas etc. Agora que me encontro “reabilitado”, gostaria de que houvesse uma lei garantindo ‘atendimento preferencial aos honestos’.

 

Quanto aos moradores de rua, consumistas contumazes que somos, temos muito o que aprender com eles, que tocam uma vida alternativa e frugal. Muitos trabalham duro e honestamente na coleta de recicláveis vendidos a preços vis. E de vez em quando molham o gogó com umas biritas. Que mal há nisso?

 

FILIPE

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DONA IDA

por feldades, em 04.08.18

A Capela de Nossa Senhora das Dores estava quase vazia. Numa urna, defronte ao altar, o corpinho de minha amiga repousava sereno quando amigos e parentes foram chegando pouco a pouco. Aproximei-me devagar e a vi. Seu rosto, agora livre das fadigas terrenas, expressava uma ternura angelical. O pequeno sino tocou e o sacerdote entrou reverente para dar início à celebração.  E nesse momento, exaltou o nome de dona Ida: “Mulher de muitas virtudes e de oração, dona Ida é digna de ornar-se com o terço que traz nas mãos!”. Sim, o padre Carlos tem razão. O terço foi companhia inseparável de dona Ida desde a infância. Nas visitas que eu fazia, nunca a vi sem o tercinho. Muitas vezes eu a encontrava adormecida, numa espécie de êxtase, mas numa das mãos estava lá o pequeno rosário.

 

Essa minha amiga viveu os últimos cinco anos cega e surda numa cadeira de rodas. Quando eu chegava, ela costumava perguntar quem sou. Mas na impossibilidade de me ouvir ou me enxergar, desistiu de fazer essa pergunta, indo logo ao ‘trabalho’: “Eu não sei quem é você nem o que veio pedir, mas Deus sabe e ele vai atender”. E assim, com a mão sobre minha cabeça, rezava um Pai-Nosso seguido de uma Ave-Maria, finalizando com a bênção de São Francisco.

 

Certa feita, isso aconteceu há uns dois meses, quando eu me ajoelhei diante dela em sua cadeira e pus sua mão sobre minha cabeça, como sempre fazia, ela me reconheceu de pronto: “É o Filipe!”. Sorriu, fez o Sinal da Cruz e começou as preces. Fiquei tocado com aquilo. Como pode, depois de tantos anos sem me reconhecer, nem ao menos me enxergar ou me ouvir, ela me identificar?! Que alegria eu senti!

 

Dona Ida viveu muitos anos em São Paulo, conforme me contou. Na mocidade, tentou entrar para o convento, mas não foi aceita. Então ela resolveu, por si, consagrar-se à Virgem Maria, com votos de pobreza e castidade, e tocou a vida. Criou sobrinhos, que eram órfãos, e se sustentou trabalhando em fábrica de tecidos na Zona Leste. Na Igreja, exerceu trabalhos pastorais com menores carentes. Aposentada e com os sobrinhos já adultos, mudou-se para Amparo, onde continuou suas atividades na Igreja, como leiga engajada que sempre fora.

 

Quando os ventos dos anos lhe sopraram mais fortemente, dona Ida procurou abrigo no Lar dos Velhos, declinando dos cuidados oferecidos pela sobrinha. Embora tenha experimentado algum sofrimento na nova casa, dona Ida foi feliz ali. Tinha uma funcionária de sua confiança, a Maria, que todos os dias a ajudava. O seu quarto era limpo, organizado e havia uma ‘Madona’ sobre uma cômoda, que enfeitava o ambiente, fazendo do espaço uma pequena capela. Mas essa imagem foi maldosamente quebrada por alguém. Dona Ida, embora tenha ficado muito triste com isso, conseguiu que a “restaurassem”. Não acho que houve restauro. Comprou-se outra imagem e assim ela ficou satisfeita.

 

“Eu sofro muito, mas não reclamo. Apenas espero a hora em que Deus vai me chamar”, dizia aquela alquebrada senhora, amarrada na cadeira, com apenas um sopro de voz. E aos noventa e quatro anos, dona Ida partiu mesmo, mas ‘em odor de santidade’.

 

FILIPE

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