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O tempo é ligeiro. As horas passam, os dias vão. Os meses, os anos, os séculos – todos voam em velocidade de cruzeiro. Com eles, vamos todos passando, desfilando pela vida rumo ao desfiladeiro que nos aguarda. Por isso, uma visita aos pais, ao amigo, ao irmão, ao parente distante é algo que não se pode postergar. Se o hoje existe, o amanhã é uma incerteza. De presente, temos o ‘presente’; o futuro é miragem.
Rabisco este texto numa madrugada na casa de meus pais, que estão velhinhos. Velhinhos, mas felizes. Felizes e saudáveis. E a alegria desse reencontro é um indescritível sinal do Reino. O dia desperta ao som de galos, grilos e sapos na lagoa. Uma carimbamba, lá nas encostas, participa deste alvorecer com sua clássica cantata: “Amanhã eu vou, amanhã eu vou, amanhã eu vou”. Talvez ela saiba que amanhã estarei com meu irmão mais velho, o Mano Véio – já ‘sessentão’ e que parece nunca abandonar a juventude. Depois de amanhã, reverei dois amigos: um não vejo há algum tempo, o outro anda arredio por razões ideológicas. Cismou que o país teria que ser governado por um capitão, a quem todos nos subordinaríamos. Mas se meu amigo pensa assim, fazer o quê?... Amigos devem ser indiferentes a essas diferenças.
Agora, já com dia claro, uma vaca muge ao longe à espera da ordenha. E no telhado da casa vizinha, uma gatinha mia um miado sedoso para seus filhotes. No quarto ao lado, mamãe, acordada desde as três ou quatro da madrugada, mexe em seus guardados. Próxima de completar oitenta anos, anda com dificuldade mas ri com facilidade. E nunca deixa de fazer suas preces matinais. Uma ferida decorrente de erisipela está cicatrizada, mas o dedinho do pé direito cismou de doer uma dor aguda. Perguntada onde dói: “É entre os dois ossinhos... Ih! Nossa Senhora!!!”, exclama aflita, apontando para aquele dedinho ‘insubmisso’.
Visitei meu amigo rebelde, também sexagenário como o Mano Véio, mas com ímpetos de adolescente. Assustou-se com minha inesperada chegada e tentou disfarçar um pequeno mal-estar criado por ocasião das eleições. É um rapaz íntegro, generoso, com um humor bastante peculiar que o faz parecer sempre jovem. Quisera eu envelhecer assim.
Revi outros amigos, lá dos tempos de colégio. Um deles me passou cola numa prova de inglês. Confesso aqui este pecado: já colei ou tentei colar. Mas foi somente uma vez, eu acho. Se não houve outras vezes, não é por eu ser honesto, mas cagão. Ficava com medo de ser pego e, por isso, não colava. Preferia estudar a passar carão perante os colegas, levando bronca de professor. Mas esse amigo me ajudou, passando a resposta de uma pergunta, que respondi equivocadamente como sendo de outra. Só que ele errou e eu acertei, pode?... Nunca me esquecerei desse êxito, mas nem por isso insisti no delito.
Está escrito: “Procurai enquanto se pode achar!” Essa exortação vale também para esses reencontros, que são todos agradáveis aos olhos de Deus. Portanto, vamos nos esforçando, porque o tempo é ligeiro. As horas passam, os dias vão.
FILIPE
Cheguei lá à tardinha. A porta estava aberta, a tevê desligada e a sala vazia de gente. Os cães, sim, estavam por ali, mas estranhamente quietos. A brancura daquele silêncio permitiu que eu ouvisse vozes sussurradas vindas das profundezas do corredor – da cozinha, talvez. Dei uma batidinha na porta e fui entrando, como de costume. Uma mulher, que eu desconhecia, veio ao meu encontro, olhando-me desconfiada. Perguntei pelo meu amigo. Ela respondeu que estava no quarto e quis chamá-lo. Acudi dizendo que o deixasse, que eu iria até lá. Fui incisivo, mas ela se adiantou, acendeu a luz e o despertou. O amigo estava deitado, tentando disfarçar o sono interrompido quando me viu. Com os olhos feridos pela luz, tentou sorrir, falando com indisfarçável dificuldade. “Como tenho sofrido esses dias...” Pensei no diabetes e perguntei: “Não está bem de saúde?” “De saúde até que estou bem, mas é muito aborrecimento.” “O que lhe aborreceu?” “Meu neto está preso.” “Ah, é?! Mas o que foi que houve?” Aqui minha pergunta foi desnecessária, talvez até ofensiva, mas precisava continuar a conversa com ele e o fio dessa prosa continha este indesatável nó. “É negócio de maconha”, respondeu sem titubear, e continuou: “Faz tempo que eu vejo um entra e sai aqui, e eu não gosto disso. Mas o menino cresceu e não me obedece mais. Antes eu ainda punha ordem, mas hoje não posso nem comigo”, disse levando a mão trêmula ao rosto, numa expressão de impotência e desolação. ”A minha cabeça está quebrada. Eles chegaram de manhã e, por sorte, eu estava dormindo. Senão eu ia preso também, porque não ia deixar levar o meu neto. Logo ele, que fazia de tudo pra mim... Me dava comida, remédio, me levava ao médico. Agora eu não tenho mais ele comigo e nem sei pra onde vão me levar. Ah, mas se eu soubesse quem entregou o meu neto... eu ia fazer uma bobagem. Ah, se ia. Já me falaram que é pra deixar pra lá, que não vale a pena se enroscar com isso. Mas eu fico com muita vontade de ir atrás para saber quem fez aquilo.
Naquele quarto, o ar estava parado, viscoso, denso. Suando e esperando que o amigo concluísse, eu observava as paredes nuas e borradas pela umidade. Num canto, uma cadeira de rodas aguardava pacientemente o ‘seu senhor’ para um eventual passeio. Perguntei a ele se não queria que eu buscasse o ventilador. “Eu já vou pra sala”, disse tentando se sentar na cama. Ajudei-o a se levantar, conduzi-o até à sala e posicionei o ventilador de forma que pudesse se refrescar melhor. Ele ficou ali sentado, agora um pouco refeito das angústias. Lá dentro, duas mulheres continuavam falando baixinho, quase cochichando. De vez em quando, uma risadinha miúda marcava o fim ou o início de um assunto.
‘Pereirão’ – assim sua esposa se referia a ele – já passou por muitos solavancos ao longo de seus noventa anos. Perdeu filho, esposa, uma filha recentemente e agora o neto para a carceragem. Em seu consolo ficaram os cães, que não o deixam por nada. Enquanto sua barba era feita, um deles repousava no encosto do sofá, abraçando-lhe carinhosamente o colo.
FILIPE
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