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Era de manhã, eu ia para o serviço, quando, de repente, eis que cruzo com uma criatura muito fofa. Paro e a fixo por um instante, e tento pará-la. Mas ela tinha pressa e não podia ser interrompida por mim. A rua estava deserta, mas à frente havia uma avenida bastante movimentada, e era para lá que se dirigia apressadamente a desajuizada “criança”. “Por que a pressa?”, quis perguntar mas desisti. E digo logo do que se tratava: um filhotinho de gambá.
O gambazinho queria arriscar a vida na avenida, mas não permiti. Abri o jornal e lhe fiz acenos para que voltasse, ele quis me desobedecer, mas fui enfático. Então o bichinho deu meia-volta, retornando com indisfarçável mau humor. E assim, fui conduzindo o ‘timbuzinho’ que, de vez em quando, me olhava furibundo. Contudo, manteve-se obediente num trote miúdo que fazia o corpo tremular e o rabinho oscilar, indo até o Jardim Público. Diante do meio-fio – para a diminuta criatura uma “muralha intransponível” – quis desistir, e, mais uma vez o meu jornal entrou em ação. Amedrontado, foi beirando a guia até encontrar uma fenda na qual pôde pôr as patinhas e escalar. Dali para diante, deixei que ele decidisse por si. Entrou num gramado, cruzou a passarela e se embrenhou no mato com muitas árvores. Ufa!
Mas esse não é um “encontro com o poeta”, mas um “encontro com a poesia”! Com o poeta foi noutro dia.
Eu voltava da escola, já bem noite, caminhando pela calçada oposta a um bar quando ouvi: “Professor, quero te dar os parabéns!” Pensei: “Não faço aniversário, não ganhei prêmios, não há por quê...” Mas, para cumprir o protocolo, cruzei a rua até a calçada onde havia umas mezinhas e ‘gente jovem reunida’. “Por que os cumprimentos?”, perguntei. O ‘Poeta’, era ele, me disse: “Gostei muito do que você escreveu.” Fiquei perplexo. Veio-me um filme antigo, de quando mandei algumas notas ao jornal contestando o “Poeta”. Num artigo, chamei-o de “extemporâneo da arcádia” – um xingamento, claro. Mas não. O Poeta referia-se a um texto que escrevi sob o título de “Carta ao Eremita”. Disse ter gostado muito e que levou o texto ao bispo diocesano. “Você já conversou com o bispo? Precisa conhecê-lo. É um dos nossos”, finalizou.
Sem ter como retribuir a ‘mesura’, pensei em falar alguma coisa que pudesse agradar meu interlocutor. Fui com esta: “Olha, também leio seus textos, tenho um livro seu e gosto muito, viu?” Ele me pareceu meio desconcertado, mas achei que a dose foi pequena, fraca mesmo. Então aumentei a carga: “Estamos sem Príncipe dos Poetas. Paulo Bomfim morreu e a cadeira está vazia. Por que você não se candidata?” Ele me respondeu: “Depois de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Guilherme de Almeida... Sabia que após a morte de Guilherme de Almeida, passaram-se anos até que alguém, no caso, Paulo Bomfim, se apresentasse?... E agora, quem vai ter a ‘cara de pau’ – e eu digo ‘cara de pau’ mesmo – de achar que pode ser ‘Príncipe dos Poetas’?”
A conversa foi curta, mas saí impressionado com o Poeta, com quem já tive sérias divergências e, contudo, ele sempre me tratou cordialmente. Não menti. Leio suas crônicas e poemas e admiro sua intelectualidade. Como poucos, ele tem domínio da escrita e memória prodigiosa. Confesso que esse encontro me deixou arrependido de um dia já ter brigado com o Poeta.
FILIPE
Nossas vergonhas nem sempre são públicas e muito menos devem ser publicadas. De minha parte, já passei boas vergonhas – algumas até simpáticas. A seguir, devo citar umas três ou quatro, mas o raro leitor não terá sua curiosidade plenamente satisfeita, porque ainda tenho alguma lucidez.
Por exemplo, por um sem-número de vezes, um motorista para, interrompe minha caminhada e minha leitura, e, com um papel na mão, talvez uma nota fiscal, pergunta cheio de aflição: “Por favor, onde fica a rua Humberto Beretta?” “Rua Humberto Beretta...”, fico matutando enquanto o motorista aguarda ansioso. “Olha, eu moro aqui há pouco tempo e não conheço nada na redondeza”. Ou: “Ih, moço, eu não sou daqui!...” Mentira. Moro há dez anos neste pedaço e a Humberto Beretta fica há duas quadras de casa. [Será mesmo?...] Houve uma vez que atendi com toda convicção a um motorista. Mandei-o cruzar a cidade, seguindo sempre à direita até seu destino. Eu tinha tanta certeza e fui tão convincente, que senti até certo orgulho de minha sabedoria. Só uns passos adiante é que me dei conta de que o endereço procurado pelo desditoso motorista ficava a menos de cem metros de sua pergunta.
Outra. Na escola, sempre peguei a fila com a molecada para merendar. Mas houve um tempo que me cansei de ficar na fila. Amparado pelas minhas cãs e alegando a necessidade de me antecipar aos alunos na volta para a sala de aula, cismei de ir direto ao balcão de serviço. Fiz isso por algumas vezes até que uma merendeira recém-chegada me disse: “Professor tem que respeitar a fila!” Fiquei mais envergonhado do que chateado e dali por diante nunca mais furei fila.
Mais uma. A minha mais recente vergonha foi na igreja. Era Dia dos Padres e havia uma homenagem ao sacerdote no final da missa. Um senhor pegou um papel, empostou a voz e deitou falação. Houve uma pausa e eu pensei que já tivesse terminado. Estranhei o fato de todo mundo ficar quieto e pensei: “Que chato... Ninguém aplaude?!...” E tomei a inciativa começando a bater palmas sozinho. Me veio um calafrio, mas já era tarde e eu tentei terminar o serviço mal começado. Pus-me de pé e aplaudi com mais vigor. Somente eu, porque o homem ainda não havia terminado a leitura. No final, é claro, houve os esperados aplausos. Desenxabido, fiquei aguardando lá fora. Nisto, veio um senhor, já idoso e muito simpático, e começou a falar comigo sobre a chuva que começava e o animava com seu pomar. A chuva, dizia ele, vai aumentar a produção de figos. Eu lhe disse que tenho duas figueiras que nunca deram nem flor. Ele me orientou a podar e adubar. “Ah, posso pôr o adubo ‘FCK’?”, perguntei como alguém que entende muito bem de adubos. Ele: “Bom, esse aí eu não conheço, mas ponha o ‘NPK 20 - 5 - 20’”. Somente mais tarde é que me dei conta de que não existe nada com o nome de ‘FCK’.
FILIPE
O assunto seria outro e eu nem sabia ao certo de que eu trataria na postagem de hoje. Estava propenso a falar de uma tristeza profunda que me abate nestes tempos inglórios, quando nosso horizonte tem sido cada vez mais obscurecido por alguns usurpadores – esses “seres das trevas” ora no Poder. E além disso, sendo já quase sexagenário, descobri que, a partir desta data, terei de trabalhar por mais ‘956 dias’ para requerer aposentadoria. Estou triste por essas e outras coisas, que hão de passar.
Mas, terrificado pelas notícias sempre assombrosas que brotam na tela do computador, tento espairecer, escrevendo bobagens neste blog. E assim aconteceu há duas quinzenas, quando publiquei o texto “Na Sala dos Professores” – uma crônica bem-humorada, mas que despertou inesperada fúria em alguns colegas de trabalho.
Talvez não venha ao caso, mas preciso explicar aos meus “algozes” que ‘crônica’ é algo bem diferente de ‘artigo de opinião’ ou ‘reportagem’. Por tempos considerada um gênero literário menor, de pouco prestígio, foi Rubem Braga quem deu à crônica certa nobreza. Nela, o autor não tem compromisso com a veracidade dos fatos e sua narrativa é livre, quase sempre satírica, irônica e vem lambuzada de humor. Ah, mas é preciso ter senso de humor e alguma argúcia para entrar no ‘clima’. Não tendo uma coisa nem outra, é melhor partir para o noticiário político ou para o jogo de dominó ou, quem sabe ainda, procurar uma pista de ”dança tântrica”. Prestigiada ou não, e pela sua irreverência, a crônica é meu gênero favorito, que leio vorazmente e tento rabiscar algumas.
Mas, talvez por desconhecimento e não por maldade, alguns professores não me entenderam e, de forma velada e cruel, atacaram-me impiedosamente. Tachado de antiético, ridículo e outras belezuras, fiquei estupefato. Contudo, para desgosto daqueles, outros me apoiaram, fazendo-me imerecidos elogios.
Sinal dos tempos, uma ministra, aquela que esteve num pé de goiaba, falando com Jesus, recentemente baixou instrução proibindo publicação de livros infantis em que há estórias de fadas, duendes e bruxas. Pela mente doente daquela senhora, todo o rico fabulário que coloriu a infância de inúmeras gerações deverá ser banido. Sendo assim, Pequeno Polegar, Branca de Neve, A Bela Adormecida e tantas outras eternas obras de referência deverão ir ao fogo que, espera-se não ser eterno.
Censurado ou não, devo continuar publicando minhas crônicas aqui. Convido ao raro leitor, se ainda o tenho, que as leia criticamente. Não tenho intenção de ferir ninguém e, caso alguém se sinta atingido, que use a caixa de comentários. Aproveite-a, também, para apontar meus muitos erros de Língua Pátria, e eu ficarei agradecido por tão generosa intervenção. Mas sem patrulhamento, por favor!
FILIPE
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