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CADÊ A ENXADA?

por feldades, em 26.10.19

Bom, não sei se isso é um título que se preze, mas a crônica que se segue também não deverá ser prezada por alguém. E nem por isso o título deixa de ter razão para estar lá em cima.

 

Visito com relativa frequência uma casa de idosos. Ao me aproximar de cada um, começava sempre com platitudes do tipo: “tá frio”, “tá calor”, “será que vai chover?” “cadê a chuva?” etc. Então decidi inovar, sobretudo com os homens, cuja maioria tem aspecto de gente da roça. Mudei a forma de abordagem para “Cadê a enxada?...”

 

Até que estava dando certo. O seu Antônio respondeu: “Ih, rapaz, eu não trabalhei na roça, mas meu serviço era ainda mais pesado. Trabalhei numa olaria por mais de trinta anos”.

 

Trabalhar em olaria, fazer tijolos... Isso não é pra qualquer um. Quando jovem, trabalhei por um ou dois dias na olaria de um tio, e até hoje estou cansado. Aquele tio consumiu a vida nesse árduo trabalho, e se cozinhou juntos às inúmeras caieiras de tijolos por ele queimadas. O fogo era aceso à noite e ele varava madrugadas pondo lenha e calafetando com barro as paredes para que o calor ficasse retido. De muito longe, na mais espessa escuridão, podia-se ver aquele brasido, que era um colosso de tijolos incandescentes. E o hálito ardente daquela fornalha impedia que curiosos se aproximassem impunemente.

 

Mas, naquele asilo, há quem de fato tenha trabalhado na roça. Um diz: “Vixe, quero saber mais de enxada não, moço!” Outro: “Até que se eles deixassem, eu queria uma enxada para capinar um pouco. Sabe, eu gosto e aqui tem bastante espaço. Eu queria plantar milho, mas acho que não pode, né?...” Ainda outro: “Ih, moço, já trabalhei muito nessa vida. Capinei, sim, mas não só. Até caminhão já dirigi. Mas essa danada da enxada judia da gente!” Um deles não disse que capinou, mas vem com esta: “Não quero, não. A enxada matou meu pai!” Peço a ele que explique, mas não explica nada e repete como um mantra: “A enxada matou meu pai.”

 

Em outros tempos, o seu Zé, que já partiu, era assim provocado por um funcionário: “Seu Zé, eu comprei uma enxada novinha. Então amanhã você já pode começar a capinar”. Mas o seu Zé ficava uma fera. Dentre impublicáveis impropérios, resmungava: “Eu não vou capinar. Nunca capinei, não sei capinar e ninguém vai me obrigar a capinar.”

 

Da última vez em que estive no asilo, vi um novato. Era um caboclo já meio roído, mas não tão velho e estava bem vestido. Pensei: “Com este nunca falei, mas vou provocá-lo”. Aproximei-me devagar e disparei: “Olá, tudo bem?” Ele me olhou meio desconfiado e não disse palavra. Mas eu precisava completar o serviço e emendei: “Cadê a enxada?” Dessa vez a coisa não funcionou. “Tá achando que eu sou algum filha da puta?!” “Mas por quê?...”, repliquei. “Eu sou escrivão, sei escrever e nunca tive que usar enxada!” Eu, muito sem graça, respondi: “Ah, então eu sou esse ‘filha da puta’? Porque sempre usei enxada, sou um capinador.”

 

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FINITUDE

por feldades, em 12.10.19

Ultimamente, tenho pensado bastante na tal da “indesejada das gentes”. Manuel Bandeira tem um belo poema sob o título de “Consoada”, no qual ele assim se refere à morte, que também recebe o epíteto de “iniludível”.  Tenho lembrado de pessoas que partiram há muitos anos, especialmente do meu avô Sebastião.

 

Vovô era um homem trabalhador. Embora analfabeto, tinha orgulho de saber escrever as iniciais de seu nome: ‘SLL’ (Sebastião Lopes de Lima), que costumava gravar com formão no cocho das porteiras que ajudava meu pai a fazer. Certa vez, ele levantou a barra da calça e me mostrou umas varizes – as veias formavam a letra ‘S’ – e me disse orgulhoso: “Aqui está a letra do meu nome!”

 

Vovô Sebastião cuidava de uma boa porção de terras, uma verdadeira fazendinha. Levantava bem cedo, pegava uma guiada e começava a chamar suas vaquinhas para a ordenha. Com sua inconfundível voz metalizada, ele nomeava uma a uma. Tinha várias, mas lembro do nome de apenas duas:  Açucena e Cocada. Lembro também de alguns bois carreiros: Roxinho e Ouro Fino eram “bois de coice”, aqueles que sustentam o cabeçalho do carro; as juntas Senado e Escovado, e Sete Ouro e Tesouro eram de “bois de guia”, aqueles que ficam à frente, obedecendo o candeeiro ou tentando passar-lhe os chifres. Da “junta torneira”, que fica no meio, entre os “coiceiros” e a “guia”, eu não lembro os nomes, porque eram os ‘novatos’, que estavam em treinamento. Mais tarde, dando certo, seriam “promovidos” para o “coice” ou para a “guia”. Na sua última aquisição, vovô comprou uma junta bastante desigual: o bonachão Mascote, um boi holandês que curtia a solidão dos brejos, e o endiabrado Coração, um boi preto com um coração branco tatuado na testa, que quase matou meu pai com um coice, quebrando-lhe umas três costelas. Esse danado tentou me acertar diversas vezes. Atravessando um rio, quase passou por cima de mim com o carro e tudo. Consegui me safar a nado, jogando-me na correnteza.

 

A fazendinha de meu avô era muito bem organizada. Tinha um terreiro cheio de galinhas, vários porcos de engorda, canavial e cafezal. Tinha também um simpático pomarzinho que me oferecia furtivamente deliciosas laranjas e bananas-maçãs. Ah, tinha o Queimado, um cavalo de sela e charrete, que era meu objeto de aventura. Quando ia ao pasto pegá-lo para meu avô, eu aproveitava para dar uns bons galopes. Mas o bicho era manhoso...  Às vezes, estava lá paradinho, pensando na vida, mas quando me via chegando, já dava uma abanada de cabeça e começava a sair de fininho. E não adiantava eu apressar o passo, porque ele sabia que eu não o alcançaria. Eu teria que negociar com ele, conversar mesmo, até que cedesse e resolvesse aceitar o cabresto. Depois disso, era só bamboleio! Encostava o   ‘corcel’ num barranco e, nem bem me ajeitava no seu lombo, ele já saia em disparada.

 

O sonho de meu avô era instalar confortavelmente a minha avó em sua casa na “rua”, conforme se diz na nossa terra sobre aqueles que moram na cidade. Ele tinha uma casa velha onde passavam fins de semana, mas comprou outra casa. Esta, uma das mais antigas da cidade, foi reformada mantendo-se quase intacta sua arrojada arquitetura. Certo dia, já na casa nova, vovô disse à minha avó: “Luzia, se eu morrer amanhã, não deixarei nenhuma dívida para você. Hoje paguei o resto que estava devendo.” Na manhã seguinte, dia em que eu completava doze anos, vovô partiu. Aos setenta.

 

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