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SONEL

por feldades, em 27.03.20

Publicado no jornal “A Tribuna de Amparo” – edição de 20/03/2020

 

Sonel para uns e Nelson para muitos, o bom mineiro de Jacutinga, a quem chamo carinhosamente de Alemão, é funcionário do Lar dos Velhos de Amparo há anos. Seu trabalho é silencioso e incessante, como o das formigas. Sempre que o vejo naquela casa, lá está ele frenético, com balde, vassoura e rodo, cuidando da limpeza. Ora o vejo ensaboando e esfregando o chão, ora está enxaguando ou enxugando pátios, alas internas, banheiros e corredores. O Sonel está sempre no labor, mas quando me vê, larga tudo e, braços abertos, vem dizendo: “Ô, meu amigo, eu quero te dar um abraço!”  E então recebo aquele abraço ‘caudaloso’, como diria o poeta Manoel de Barros. De volta ao serviço, exagera: “Agora, sim, está tudo bem, porque abracei meu amigo.”  

 

Do Sonel, pouco sei. Não posso tomar seu tempo com conversas, porque a minha prosa nada acrescentará ao seu rico repertório de vivências. Mas da última vez, arrisquei e lhe fiz umas duas ou três perguntas. Então soube ser ele mineiro, e um pouco mais: vem de uma família de onze irmãos, dos quais dois partiram cedo. Cedo também foi seu ingresso no trabalho. Pequenino, já acompanhava os pais numa olaria e, a partir dos quatorze anos, pegou firme na massa – literalmente. Começou amassando barro, depois fazendo tijolos, montando caieiras. Poucos sabem quão duro é o trabalho de um oleiro, principalmente nas priscas eras pré-tecnológicas. Antes de ingressar no Lar dos Velhos, o amigo trabalhou noutras coisas além da olaria, chegando a ganhar a vida como garçom.   

 

O que realmente impressiona nesse rapaz é a alegria, a disposição e seu espírito sempre elevado. Não se vê o Alemão “pra baixo”, ensimesmado, embora ele deva ter lá os seus perrengues. Até porque, com a carestia de hoje, a vida não está nada fácil para quem é assalariado. Ademais, as nossas agruras, talvez a do amigo também, não são apenas financeiras. Há uma densa nuvem de tempestade obscurecendo o horizonte deste país, que é capaz de desassossegar até as mais rasas e rudes almas.

 

Mas no Lar dos velhos de Amparo, temos a alegria Alemão, que está sempre oferendando um sorriso a quem chega. Pessoas como o Sonel tornam mais leve a nossa vida e suavizam a pedregosa existência de nossos velhinhos.

 

FILIPE

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EU NÃO SOU (...)

por feldades, em 14.03.20

Previno o raríssimo leitor: este texto contém “substâncias tóxicas”. Caso o desavisado companheiro esteja à procura de amenidades, migre para outra página, porque aqui as cores não estão muito para o azul.

 

Nestas quase três décadas em que me encontro no magistério paulista, já vi de tudo. Naturalmente coisas boas aconteceram, mas sem mérito dos governantes. O governo atual, por exemplo, resolveu dar fim às faltas de professores, convocando os que não faltam para “tapar buracos”. Alguns diretores cumprem à risca os ditames do governador, e seus comandados lhes obedecem bovinamente, sem que haja sequer um gemido de indignação. Na escola em que trabalho, justiça seja feita, os gestores apenas convidam os professores que se encontram em atividades burocráticas para cobrir certas faltas, sem obrigá-los. De minha parte, procuro colaborar, atendendo classes que nem são minhas. A recepção é sempre amistosa e um bom trabalho tem sido feito.

 

Ontem, no entanto, a fortuna não me visitou. Após eu “tapar dois buracos”, uma colega me abordou, dizendo: “Você está substituindo?!” “Sim”, eu disse. “Então não entre naquela sala ali”, apontou. “Mas, por quê, se me dou muito bem com eles?” “Nem queria te contar, mas ouvi uma barbaridade agora, e acho que você não deveria entrar lá.” Ouvi dela a tal ‘barbaridade’ que um jovem teria dito, mas dei de ombros. Passou um tempinho, senti um calafrio e pensei: “Isso não pode ficar assim. Vou lá.” Uma das professoras com quem eu conversava pediu para me acompanhar, mas eu quis ir sozinho.

Entrei na sala, pedindo licença e dando bom-dia como sempre faço, e fui direto ao assunto. “Bem, como vocês sabem, faltam professores nesta escola, e, para que vocês não tenham tanto prejuízo, entro nessas aulas vagas. Olha, eu faço isso por que quero. Faço pensando no bem de vocês. E nessas entradas, nunca obrigo meu aluno a fazer as lições. Eu tenho enorme carinho por esta classe e sempre que entro aqui, chego de ‘coração aberto’. Para mim é sempre uma alegria muito grande estar aqui”. Enquanto eu falava, todos me ouviam com excepcional atenção, talvez esperando o triste desfecho de meu discurso, que chegou sem delonga. Hoje, porém, eu soube que alguém daqui disse para quem quisesse ouvir: ‘Aquele filho da puta vai dar aula pra nós hoje, e nem é dia dele!’ Olha, respeite a minha mãe, que se encontra enferma, sofrendo numa cama. E a minha mãe não é puta. Portanto, eu não sou filho da puta!”

 

Depois disso, uma professora-gestora conversou com a classe e me deu o apoio de que tanto precisava. Mais tarde, uma aluna me procurou, solidarizando-se comigo. “Fiquei muito sentida pelo senhor”, ela disse. Pressentindo que fosse dizer o nome de alguém, eu a interrompi: “Olha, agradeço muito a sua solidariedade, mas eu não quero saber quem disse aquilo. Quero continuar estimando a todos, sem exceção.”

 

Hoje entrei naquela sala como se nada tivesse acontecido. Mas aconteceu.

 

FILIPE

 

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