Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
A fila era maior nas manhãs de segunda-feira, quando havia cerca de uma dezena de “estropiados” aguardando atendimento na enfermaria da unidade militar de cavalaria – onde servi no ano de 1980. O médico era um tenente, mas o cabo Valadares é que tinha mais contato conosco e quem ministrava a famosa injeção de eucalipto, que servia para tudo e doía pra burro. Mas nem sempre sobrava serviço para o cabo Valadares, porque de vez em quando o subcomandante, um capitão paraquedista, aparecia subitamente e, vociferante, punha todos em posição de sentido. Depois de uma saraivada de impropérios, interpelava um por um: “Soldado, o que você tem?” “Estou com dor de cabeça.” “Isso não é nada. Pode descer! E você, o que sente?” “Tenho tontura” “Isso é ressaca. Pode descer também!” E assim, em um minuto ele esvaziava a enfermaria.
Eu trouxe esse fato aqui para mostrar como funciona a cabeça de alguns militares, que têm a hierarquia como dogma. Do ponto de vista ético, moral ou profissional, a autoridade na enfermaria deveria ser do tenente, que era o médico da unidade. Mas o capitão, por ostentar uma estrela a mais, feito o “cavalão” de Brasília, atropelava seu subordinado.
Também na Presidência há um capitão. De tumultuada carreira militar, encerrada com muitos processos, julgamentos e uma aposentadoria compulsória aos 33 anos – um presentaço para quem nunca fez nada na vida além de intrigas e motins – esse sujeito tem a seu comando muitos coronéis e generais. Não consigo saber o que é mais ridículo: um capitão ter fetiche por dar ordens a generais ou generais se submeterem a um “ex-capitãozinho” apenas para ter um soldo mais gordo.
Mas eu quero falar sobre o Ministério da Saúde, hoje comandado por militares: o ministro é general e seu segundo, o diretor-executivo, é coronel. Como se vê, essa pasta não está sendo comandada por especialistas em salvar vidas e nem por alguém desejoso de ouvir quem entende do riscado. Prova disso é que, dias atrás, o general-ministro convocou os pesquisadores do seu ministério, não para discutir meios de combater a pandemia, mas para humilhá-los. Nessa reunião os microfones dos pesquisadores foram desligados e eles não puderam fazer nenhuma intervenção enquanto a cúpula militar lhes dava instruções. É esse o pensamento de quem saiu do quartel para ocupar cargos no governo. Pergunto: como um militar pode ocupar cargo civil se um civil não pode ocupar cargo militar?... Não está assimétrica essa relação? Mas uma coisa ficou patente: os militares, pelo menos os que estão no governo, não têm competência administrativa e são fracos intelectualmente. Seus esgares autoritários dão-se em razão da absoluta incapacidade de argumentação.
Pois é... o povo segue sofrendo com desemprego e uma pandemia sem fim. São milhões de infectados, centenas de milhares de mortos, mas o ogro do Planalto sai às ruas sem “focinheira” e arrotando as asnices de sempre. Mas ele está certo porque, apesar do desastre de seu governo, ainda tem apoio de metade da população. Cá pra nós: eta povo besta, não?!
FILIPE
Esta é a minha família e essa foto foi tirada no antigo terreiro da casa em que vivi a minha infância. Numa casinha de alvenaria e sem reboco que existia ali, minha mãe teve sete filhos, sendo que seis estão na foto e o outro partiu ainda na primeira infância. Lembro muito bem de cada nascimento, que enchia de júbilo a nossa casa.
Funcionava assim. Algumas vezes, sem que soubéssemos de nada, uma avó chegava à tardinha em casa e ficava para pernoitar. Eu achava estranho, porque minhas avós não tinham o costume de nos visitar. E ainda vindo para dormir?... Bem, minha avó chegava, se ajeitava numa esteira na sala e lá dormia. Nós também íamos para cama cedo, logo após o anoitecer, porque não tínhamos sequer rádio de pilha para nos entreter. Lá pelas tantas, não sei se meia-noite ou três da manhã, papai chegava ao nosso quarto e bradava: “Tem gente nova!” Acordávamos sem entender, mas tudo se esclarecia com o choro do recém-nascido. Então levantávamos e íamos até o quarto dos pais. Lá estava minha jovem mãe amamentando um bebezinho já envolto em flanelas. Na cozinha, minha avó estava ao fogão fazendo uma ‘canja’, que não era bem canja, mas caldo de galinha com farinha de milho. Minha mãe tomava aquela refeição sempre que estava “de resguardo”, e eu gostava de ficar por perto, observando-a. Quando mamãe terminava, eu pegava seu prato e raspava o restinho. Ela, sabendo que eu queria participar de seu lanche, sempre deixava um fundinho de prato para mim. Ah, como era gostoso!...
Os meninos lá em casa cresciam sempre robustos. Todos eram alimentados nos primeiros meses apenas com o leite materno. Quando crescidos, porém, papai preparava mingau de fubá, que era feito com leite de vaca e adoçado com rapadura. Esse mingau era dado numa mamadeira de plástico que durou várias gerações de bebês. Quando o bico dessa mamadeira estourava, papai comprava outro e punha na mesma garrafa. E assim, com poucos recursos e alguma criatividade, papai criava sua prole, que crescia e crescia. Toda vez que o caçula beirava os dois aninhos, outro rebento surgia no ninho e a história se repetia.
Quando a criança ficava maiorzinha e deixava de ser caçula, perdia o colo, mas papai improvisava. Pegava um caixote de madeira e fazia dele um ‘carrinho de bebê’, só que sem rodas. Punha nele a criança e ali ela ficava no meio da casa para que todos a entretivéssemos, puxando ou empurrando o seu caixote. De início a criança se assustava, mas depois gostava e dava risada com o movimento brusco no chão cimentado. Aquele caixote fez história, porque durante o dia, era a casa, a cama e a privada do bebê – antes de aprender andar. De vez em quando papai nos mandava lavar o caixote, porque ele estava ficando inabitável.
Mas é preciso voltar à fotografia que abre esta crônica. Ali vejo com alegria nostálgica o passado e com tristeza o futuro. Tristeza, porque esse pode ser o último registro da família completa. Tristeza porque a vida corre célere e o tempo é uma moenda que tudo mói. Tristeza porque logo será pó a minha história.
FILIPE
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.