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Quando menino, eu tinha um primo-avô paterno que, para onde quer que fosse, levava consigo um saco às costas. Lembro bem daquela figura: andar cambaio, chapelão de palha, botas, porrete numa das mãos, e na boca um pequeno graveto. Eu nunca soube o que havia dentro daquele saco nem onde aquele senhor morava. Acho que ele nem tinha casa. No entanto, falavam que tinha muito dinheiro e que seus ‘cobres’ estavam todos naquele saco. Outros já diziam que ele carregava apenas bugigangas e que sua fortuna fora confiada a um abastado sitiante de quem esperava, como recompensa, a mão de uma das filhas. Como o devedor tinha três filhas moças, todas lindas e solteiras – e para meu parente, que não tinha luxo, qualquer uma serviria –, suas chances deveriam ser bastante razoáveis. Todavia, a ‘sorte grande’ não o contemplou. O tempo passou e o velho primo, cada vez mais velho, morreu solteiro.
Na minha casa também havia alguns sacos onde púnhamos mantimentos como milho, feijão, fubá, amendoim etc., e que também eram usados para buscar pequenas compras que fazíamos nas vendinhas da roça ou do arraial. Havia dois tipos de saco: o mais comum era o branco, de algodão, que quando rasgava era alvejado e promovido a toalha de banho; e o ‘saco de aniagem’ – pardo, rústico, mais conhecido por “saco de mauá”. Este era feito de um tecido grosso, resistente, talvez fibra de juta ou sisal, e que tinha, dentre outras, a humilde função de guarda-chuva. Para uma neblina não havia capa melhor. No tempo das águas, durante o plantio, meu pai fazia uma espécie de capuz com aquele ‘saco de mauá’ e partia para o roçado. E atrás dele, íamos nós, cada um com seu “capuz”.
Voltando ao meu primo-avô, que passou a vida carregando num único saco todos os seus bens, sonhos e frustrações, eu me recordo de um tio-avô, primo dele. Também este meu tio não tinha parada nem morada. Ora ficava na casa de um parente, ora na casa de outro. Muitas vezes ele passava na nossa casa, ficava conosco uns poucos dias e seguia um caminho, e qualquer caminho lhe servia. Sobre esse tio, a única coisa que o vi carregando em suas andanças foi um guarda-chuva velho, desbotado e com barbatanas quebradas, e que deixara esquecido no paiol de casa. E um paletó, também velho, desbotado e puído. No mais, o tio vivia só, falava sozinho e dava risada do que dizia de si para si. Além da roupa do corpo, um pedaço de rapadura, amendoim e um cigarro de palha, nada mais lhe faltava para ser feliz.
Quando a saúde ajudava, meu velho tio andava pelas matas, fazia um grande feixe de lenha e o depositava no terreiro de casa. Depois do almoço, costumava sumir. Ele subia o morro e ia tirar uma soneca à sombra de uma moita de bambu na brisa da tarde e ao som dos pássaros e do farfalhar das folhas. E se a saúde, sempre frágil, permitisse, ele ousava mais. Aventurava-se em um ou dois mergulhos no rio, cumprindo assim sua agenda de banho semanal.
Aqui, um fragmento da história de vida de dois senhores. A sua maneira e a seu tempo, cada um viveu e tentou ser feliz.
FILIPE
Dona Celisa foi uma das pessoas mais incríveis com quem convivi ao longo desta vida, que já se alonga. Quando a conheci, ela era uma “jovem octogenária”, que conservava o viço da mulher culta e elegante que sempre fora. Sua companhia era leve, suave, quase imperceptível. À noite, aquela mulher nunca se recolhia aos seus aposentos sem antes nos dar um boa-noite; pela manhã, ao se levantar, o bom-dia era tão certo quanto uma prece matinal.
Dona Celisa gostava de café. No começo de sua enfermidade, eu lhe dava o “pretinho” ainda na cama. Ela se sentava, pegava a xícara e, após um pequeno gole, dizia: “Tá gostoso!”
Paulista, dona Celisa mais parecia uma mineira. O jeito de receber visitas, de prosear e o café oferecido a quem chegasse davam-lhe um ar de mineiridade. Muitas vezes, enquanto sua filha dava aulas de pintura lá no rancho, ela pegava o pote de pó, uma vasilha com água e me olhava sem dizer nada. Então eu sabia que era para fazer o café. Mas não era só café. Ela também pegava manteiga e pão, punha numa bandeja e me pedia para levar para as meninas.
Quando cheguei naquela casa, logo assumi o fogão, e a dona Celisa passou a se referir a mim como “o cozinheiro”. Eu não sabia cozinhar, mas inventava uns “grudes” que nos matavam a fome. Embora muito contida à mesa, ela gostava da comida e sempre dizia: “Desse jeito vamos todos sair daqui rolando [de tão gordos]!”
Dona Celisa tinha uma predileção pelos pobres e desafortunados. No Natal, ela sempre dava um “envelope recheado” aos coletadores; o pedinte nunca saía de mãos vazias; e, todas as sextas-feiras, por volta das 15 horas, ela saía para visitar uma amiga adoentada. Também nunca perdia as missas e participava de todas as novenas, rezas e campanhas de arrecadação feitas pela sua comunidade.
De dona Celisa ouvi muitos casos, fatos antigos, alguns do final do primeiro terço do século passado. Contava ela que em 1932, durante a guerra civil entre paulistas e o governo Vargas, houve tiroteio na cidade de Amparo. Aflitos, ela com seus irmãozinhos protegiam-se no porão do casarão onde moravam. “Foi um horror!”, dizia.
Dona Celisa falava bastante sobre seu trabalho. O começo da carreira de professora, no início dos anos cinquenta, foi muito difícil. Contou-me com detalhes suas dificuldades na distante Bofete (uma cidade paulista), aonde se chegava somente a pé ou a cavalo. Depois, já no encerramento da carreira, mais dificuldades. Transferida para uma escola próxima de casa, teve de dar aulas para uma classe numerosa e indisciplinada. Na sala de aula eram tantos alunos, que ela não conseguia transitar entre as carteiras para lhes dar assistência.
Certa vez dona Celisa me mostrou um papel já bem desgastado. Era uma redação dos tempos de estudante, de quando era adolescente. Ali, a jovem fez uma descrição poética e pungente da mãe gravemente enferma, de quem pouco tempo depois ficaria órfã.
O tempo foi passando e a dona Celisa não conseguia mais fazer suas visitas nem ir às rezas. O tempo passou mais um pouco e dona Celisa já não contava caso. Por fim, a bondosa senhora já não sorria.
Hoje a dona Celisa está no Paraíso com os serafins, os querubins e as pessoas que, como ela, fizeram o bem aqui na terra. Mas não só com esses. Ela, com toda certeza, tem consigo a Lilica – sua fiel cadelinha de quem não se desgrudava.
Assim acredito, porque toda criatura terá parte com o Criador!
FILIPE
“Leio o que você escreve, sabia?”, ela me disse quase em segredo. Ao ouvir isso, fiquei a meio caminho entre a surpresa e a preocupação. Sim, porque jamais imaginaria que aquela garotinha de uns doze anos apenas pudesse se interessar pelos meus textos, que são um tanto áridos. A partir de hoje hei de ser mais cuidadoso com minhas publicações. Prometo.
A conversa fluiu por longos cinco minutos – uma eternidade para quem não consegue trocar mais do que três palavras com alguém de doze anos. Se o meu interlocutor tiver mais de doze anos e com ele houver alguma afinidade, a conversa poderá conter algumas frases além das três palavras iniciais; caso contrário, o silêncio se faz benfazeja solução.
Então, como a menina resolveu se soltar, eu tentei ser um ouvinte atento. Ela disse que a leitura a faz mais reflexiva e a torna tolerante ao diferente. E também confessou o desejo de escrever um livro, o que me deixou particularmente encantado.
Fiquei, como esperado, sem palavras, mas lhe disse alguma coisa do tipo: “nunca deixe de ler”, “a leitura abre horizontes” ou “quem lê adentra outro universo” etc. Não sei o que a menina pensou dessas minhas platitudes, mas foi o que eu tinha a oferecer naquele momento. Ah, também a aconselhei a escrever um diário para aprimorar seus textos. “Escreva todos os dias ao menos duas frases contendo as alegrias ou tristezas, realizações ou frustrações. Não importa o quê, mas escreva sempre.” Por fim, o assunto acabou e a menina retirou-se.
Mais tarde, já noite alta, chegou o Freizinho de suas peregrinações e engatamos uma prosa sobre assuntos diversos. Falamos de capitalismo, socialismo e temas teológicos. Falamos, não. Ele falou, porque o ‘lugar de fala’ é dele, não meu. Metido que sou, fico cutucando, dando uma de sabedor das coisas, mas o frei, que é sempre muito gentil, me acolhe a mim e a minha ignorância sem perder a elegância.
Finalmente, um grilo aparece na tertúlia e o assunto passa ser o inseto. O franciscano, no melhor de seu ofício, agarra o bicho carinhosa e cuidadosamente para lançá-lo ao terreiro. Sorte do grilo se o sapo, que é um bichinho de estimação da Mana Véia, não o abocanhar. Não sei se torço pelo grilo ou pelo sapo. Gosto dos dois, mas a natureza tem suas regras.
FILIPE
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