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NO TERMINAL RODOVIÁRIO

por feldades, em 18.02.22

Cheguei com relativa folga à rodoviária de Sampa. O tempo me permitiu passar na ‘feirinha literária’, que é uma espécie de “quarto de despejo” de uma livraria. Ali há livros a preços bastante razoáveis. Com módicos 15 reais, por exemplo, compram-se clássicos da literatura brasileira. Sempre levo livros infantis para algum sobrinho e palavras cruzadas para meu pai. Dessa vez garimpei um calhamaço com 365 cruzadinhas por apenas 20 reais. Olhei mais alguma coisa e pedi desconto, mas era só para professor, que precisaria mostrar contracheque. Peguei as cruzadas e uns livrinhos, dentre eles um romance brasileiro do século dezenove, e, por não ter holerite, paguei a fatura cheia e saí.

 

Fui ao banheiro.  Havia muita gente lá. O piso molhado, escorregadio. Em cada ‘’cabine’’, alguém aliviava as tripas. Naquele momento eu me lembrei de um irmão que costuma dizer: “Se eu estiver no banheiro, não fale comigo. Nem adianta insistir. Pode me chamar, falar, perguntar o que quiser que eu não respondo, porque  ali eu fico mudo. Mudo e bravo!” Mas no banheiro daquela rodoviária era diferente. Ninguém estava mudo nem bravo. Estranhamente, um homem falava alto com seu vizinho de trono. E o outro respondia quase gritando. Eu fui para lavar as mãos, ou tentar. O fluxo de água daquelas torneiras não permite uma higienização decente.  Mas eu repeti a operação algumas vezes até me convencer de que as mãos estavam mais ou menos limpas.

 

Procurei um banco para sentar. Havia alguns vazios e me acomodei num mais afastado. Sentei e dei largas à minha gula, comendo um lanche que eu trouxe de casa. Ali, no Tietê, não dá pra comprar comida. Eu precisaria vender um rim e um pulmão se quisesse comprar um sanduíche de frango e uma água de coco. Comi sofregamente o pão com rodelas de linguiça apimentada e queijo meia cura. Em vez de suco, água gelada que eu trazia numa garrafa térmica.

 

Terminada a refeição e satisfeito, vejo que a minha vizinha de frente também terminara de comer a sua maçã, deixando, porém, o esqueleto da fruta no banco ao lado. Olhei para ela e para os restos de sua janta. A moça se entretinha ao celular. Seus dedos unhudos deslizavam freneticamente na tela, mandando e recebendo mensagens. A mim, não importava a moça nem o que ela fazia no seu celular, mas me incomodavam os rejeitos de maçã sobre um banco onde alguém se sentaria. Finalmente eu me levantei e me dirigi a ela, pedindo se eu poderia recolher aquilo. Ela assentiu com um sorriso envergonhado. Com o papel que eu embrulhara meu lanche, e com bastante nojo, peguei aquele sobejo, sem que eu nele encostasse o dedo, e o joguei numa lixeira. Saí dali e fui andando meio sem rumo, até achar outro banco onde não tivesse uma moça comendo maçã nem fazendo porquice.

  

Sentei, olhei um dos relógios e vi ser largo o tempo de espera para o ônibus que me traria a Minas. Abri o notebook e comecei a digitar estas passagens quando avistei a meia distância uma amiga e colega de trabalho. Quis ir ao seu encontro,  mas desisti logo em seguida. Gosto de ficar só, principalmente numa rodoviária – esse mar revolto com seu cardume humano e o vaivém  apressado de multicoloridas malas de viagem.

 

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MEU PRIMEIRO ALUNO

por feldades, em 12.02.22

WhatsApp Image 2022-02-12 at 06.56.02 (1).jpeg

A imagem acima deverá ser a de minha última lousa. Eu quis fazer o registro porque nesse dia, quando se completavam exatos trinta anos de magistério, eu estava me despedindo dos alunos para uma licença bastante prolongada, e sem o propósito de retornar à sala de aula.

 

Certa vez escrevi neste blog, que um professor deveria se aposentar aos ‘cinquenta anos’ porque o docente, assim como a mortadela, tem data de validade. No meu caso, a coisa está ficando mais complicada porque já fiz ‘sessenta’!

 

A minha primeira experiência de professor se deu quando eu tinha dez anos de idade. Um tio, que era trabalhador rural e que estava para fazer dezoito anos, queria se mudar para a ‘cidade grande’ e tentar uma vida melhor na indústria. Para isso, ele teria que fazer um teste de conhecimentos que incluiria alguma operação matemática. Numa tarde,  ele apareceu na minha casa montado numa égua e me pediu para lhe dar umas “aulas”. Meu pai consentiu e ele me pôs na garupa do animal, que foi trotando até a sua casa. Naquele dia, ficamos até altas horas fazendo continhas, principalmente as de multiplicação por “dois ou três algarismos”.

 

Como tudo ia muito bem, ele disse: “Menino, agora eu já sei fazer as “contas de vezes”, mas preciso aprender aquelas ‘de dividir’. Então pegamos as divisões com “um algarismo na chave” e a coisa deu certo também. Com isso, ele se animou e me disse: “Agora vamos fazer uma conta mais ‘pesada’, porque essas aí eu já aprendi”.  “Mas tio, vamos deixar para amanhã...” Ele aceitou acrescentando: “É mesmo. A minha cabeça já tá até rodando de tanto número!”

 

Dormi na casa dele aquela noite e voltei para minha casa na manhã seguinte. À tardinha, o tio chegou novamente para buscar o “seu professor”. Montei na garupa da égua e voltei para dar a segunda “aula de matemática”. Ele pegou os papéis da aula anterior, desdobrou, olhou, pensou, dobrou-os novamente e os guardou. Depois pegou uma folha em branco e me disse: “Agora eu quero que você me ensine aquelas de dividir, mas com ‘dois números’”. Fiquei gelado, porque eu me enroscava com as tais divisões com ‘números de dois algarismos’ na chave. Tentei dar uma enrolada, sugeri rever as contas de multiplicação, alguma coisa envolvendo adição e subtração, mas ele não cedeu. O tio estava ‘firme na touceira’ e queria aprender algo mais complexo. “Cê tá ficando doido, sô. Eu vou ficar repetindo uma coisa que já sei?! Eu quero aprender aquela outra...” “Então, vamos lá!”, eu disse mal disfarçando meu visível mal-estar.

 

Passei uma conta mais simples com os tais “dois algarismos” e fiz pra ele ver. “Ah, eu não estou entendendo não...” Expliquei novamente, e ele: “É, essa aí é difícil mesmo!”. No final – para minha sorte, devo admitir –, ele desistiu, e muito elegantemente disse: “Olha, acho que você sabe fazer, só que eu não consegui entender nada. Mas o ‘muncadim’ que aprendi aqui já vai me ajudar na firma.”

 

E assim, menino ainda e sem que eu percebesse, iniciei a carreira de professor tendo como meu primeiro aluno esse tio, carinhosamente conhecido por Zé Boi. Ele foi para a ‘cidade grande’, passou nos testes e trabalhou por muitos anos na indústria.

 

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