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Decidi fazer uma limpeza nos meus armários e separei uma papelada para reciclagem. É um trabalho penoso, porque não gosto de descartar nada. Sempre espero achar tempo para ler aquele jornal ou revista, que há anos me espera pacientemente numa gaveta. E tem os livros... Ah, como dói ter de descartar esses danadinhos! Mas não tenho vaga para os livros didáticos. Ano passado mandei oitenta quilos para a reciclagem (fiquei curioso e pesei!), mas ainda restaram alguns, que estão sendo despedidos, infelizmente. Mas os demais jamais sairão daqui.
Sobre os livros didáticos, eu poderia escrever vários textos falando deles. Companheiros fiéis, os coitados são comumente desprezados. Quando eu lecionava, via chegar caminhão carregado de material escolar, principalmente livros e apostilas. Mas esse material era subutilizado e muitas vezes abandonado por alunos, que sempre o “esqueciam” embaixo das carteiras. A culpa não é toda dos alunos, mas de altos funcionários da Secretaria da Educação, que inventam novas metodologias em detrimento do “arroz com feijão” que são as velhas e boas “cartilhas”.
Na faxina que estou fazendo, deparei com um pequeno recorte de jornal, já amarelado, trazendo um texto com o título que abre esta crônica. O artigo escrito por Flavio Comin, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, traz uns dados avassaladores sobre os brasileiros em relação à matemática. No universo de 2.632 pessoas entrevistadas em 25 cidades, todas acima de 25 anos, constatou-se o seguinte: “um terço não consegue fazer operações básicas de multiplicação; 75% não sabem calcular médias simples nem compreendem frações; seis em cada dez não relacionam frações simples do tipo 3/4 a porcentagem nem resolvem problemas simples de regra de três para a confecção de um bolo; sete em cada dez não sabem fazer conta básica envolvendo taxas de juros; a metade não acertou onde há maior risco de erro num tratamento médico: se 1 em 10, 1 em 100 ou 1 em 10.000.”
A pesquisa avançou sobre resultados educacionais e verificou que “60% dos entrevistados não gostam de matemática, 65% têm dificuldade com a matéria e mais de 90% dos concluintes do ensino médio não têm conhecimento adequado nessa disciplina”.
O texto em questão foi publicado na Folha de S. Paulo em novembro de 2015, anos antes da pandemia que lançou num abismo ainda muito mais profundo toda uma geração.
Fico imaginando o Zé Lopes trabalhando de pedreiro e tendo como servente o filho Filipe. A masseira deve ser feita usando nove latas de areia misturadas com uma lata e meia de cimento e um saco de cal hidratada. No fim do dia, o pedreiro diz ao ajudante: “Filipe, agora eu preciso de apenas terça parte da masseira, porque senão vai sobrar massa.” Como o Filipe vai fazer isso, se ele não entende de frações?
Ah, tem também a dona Maria, que faz bolo. Para vinte pessoas, ela pega uma receita que usa dois quilos de farinha, meia dúzia de ovos, meio quilo de açúcar e 600 ml de leite. Se dona Maria tiver que fazer um bolo para trinta pessoas, como ela vai se virar?
Ah, mas a dona Maria é esperta. Ela entende de proporções e vai fazer tudo certinho. Agora o servente de pedreiro lá em cima... Sei não.
FILIPE
Tenho diante de mim, na mesa de lazer, que já foi mesa de trabalho, uma pequenina Virgem – que é miniatura da imagem encontrada nas águas do rio Paraíba no início do século 18. A imagem da ‘Senhora Aparecida’, preta e nua de paramentos, é muito mais autêntica e bela do que aquela azul, coberta de brocados e coroa de ouro, como todos conhecemos.
Adquiri essa imagem uma semana atrás, quando estive em Aparecida a fim de cumprir um voto antigo: entregar minha longa jornada de trabalho. Antes de entrar no magistério, fui comerciário, operário, lavrador e biscateiro. Foram mais de cinquenta anos mourejando num trabalho intenso, penoso e mal remunerado para, finalmente, conseguir a aposentadoria.
Com uma vida tão sofrida, a cada embaraço que surgia, um desânimo me tombava e eu me fechava cético. Com a maturidade, porém, entrei numa fase mais transcendental. Quando as coisas apertavam, eu buscava amparo nas preces, e assim fui rompendo barreiras e transpondo obstáculos. Não sei se “combati o bom combate e guardei a fé” como fez Paulo, o apóstolo, mas com muita certeza houve combates, e com pouca certeza houve fé. Mas preciso falar sobre minha viagem à Aparecida.
Essa foi a terceira vez que estive naquelas terras. Na primeira vez eu estava me despedindo da adolescência; na segunda vez eu entrava na maturidade; e nesta terceira vez já sou debutante da “terceirona”.
O Santuário de Aparecida é um templo a céu aberto. Onde quer que se vá veem-se ícones religiosos e monitores transmitindo rezas, missas etc. Tudo lá é grandioso e belo. As monumentais fachadas com seus mosaicos são uma atração à parte. Mas aquela cidade não é para muitos. Explico.
Quando se fala em “devotos de Nossa Senhora”, sempre penso nas pessoas mais simples, pobres mesmo. Mas no Santuário não há espaço para esses. Tudo lá é muito caro e parece que foi feito apenas para rico (ou para pobre sem juízo). Como não sou rico e tenho juízo, sou excluído de tudo aquilo. Continuo.
No subsolo do Santuário há a ‘Casa do Pão’, que é administrada pelos redentoristas (eu sei porque perguntei). Pensei: ali vou poder matar minha fome. Padres são bonzinhos e têm compaixão dos devotos. Peguei uma fila na qual fiquei mais de uma hora. Que decepção!
Aqui vai um conselho. Quem tem pouco dinheiro, fuja da ‘Casa do Pão’. Lá, o pobre que chega com o estômago vazio, tem que vender as tripas para fazer o desjejum. Um cafezinho, que vem num copo de plástico, mais um biscoito frito, bregamente chamado de ‘donat’, não saem por menos de quinze reais. E não adianta procurar pão com manteiga na ‘Casa do Pão’ porque você não vai achar. Hotéis, restaurantes... esqueça! Se você levar de casa uma marmita e um saco de dormir, talvez seja uma alternativa.
Pretendo voltar a Aparecida, não como peregrino, mas como turista. Em casa eu rezo e faço penitência; em Aparecida posso rezar, mas quero mesmo é apreciar os tesouros arquitetônicos – e sem muita penitência.
E por falar em oração, pergunto: por que num santuário mariano, onde as mulheres deveriam ser protagonistas, a “Consagração a Nossa Senhora” é sempre feita por homens? Se alguém puder responder, eu agradeço.
FILIPE
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