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“Meu pai estava muito doente, deitado numa cama, e me chamou para pedir água. Eu trouxe o copo e ele se ajeitou, sentando-se apoiado à cabeceira, e bebeu todo aquele copo d’água.”
A imaginária cena acima, que me era recorrente desde há muitos anos, foi quase uma antevisão da derradeira vez em que estive com meu pai. Nesse nosso último encontro, aquela cena veio real, e com tintas surrealmente fortes. Papai estava no leito de uma UTI com cateter de oxigênio, monitores cardíacos e outros apetrechos. Naquele momento doloroso eu estava amparado pela companhia de um irmão, o Freizinho. Estávamos para viajar naquela noite e passamos no hospital para despedir de nosso bom velho – uma cortesia da equipe gestora da UTI, que nos permitiu entrar fora do horário de visitas.
Entramos e percebemos que o quadro de nosso pai se agravara consideravelmente. Fizemos uma oração acompanhada por ele em silêncio e de mãos postas. Falamos sobre a mamãe, dizendo que ela, já de alta daquele mesmo hospital, encontrava-se muito bem. Papai, emocionado e num gesto de agradecimento a Deus, fechou os olhos e ergueu as mãos em prece.
No pouco tempo que permanecemos ali, uma imensidão de sentimentos me aconteceu. Foram dez minutos apenas, mas de tão ternos que me são eternos. Falávamos sobre assuntos prosaicos numa vã tentativa de amenizar o drama quando, num certo momento, sem conseguir dizer o que desejava, papai apontou para uma mesinha móvel um pouco afastada. Trouxemos a mesinha para perto e ele apontou para o copo sobre ela. Peguei o copo, que tinha um fundo de água e um canudinho, e tentei dar a ele. Permanecendo deitado, papai afastou brevemente a máscara de oxigênio e tentou beber. O canudinho não colaborava, mas, ainda assim, consegui fazer com que ele tomasse uns dois ou três goles. Depois, com um aceno e tentando sussurrar umas palavras de agradecimento, meu pai dispensou a água e reposicionou a máscara. Naquele momento, cumpria-se aquela minha antiga “profecia”. Gelei.
Despedimo-nos e pedimos a bênção, que nos foi dada com um longo aperto de mão. Dissemos que estávamos indo para a rodoviária e que viajaríamos logo em seguida. Com muito esforço, papai conseguiu dizer uma frase – a última que dele pude ouvir: “Ninguém está longe, porque estamos todos nas mãos de Deus!”
O resto é história conhecida. As crises respiratórias atribuídas à suposta ansiedade; a incessante busca por socorro médico; os chás; as muitas preces; o diagnóstico de enfisema. Depois a internação: papai passando por uma capela do hospital e fazendo ali sua última prece diante do Santíssimo; a caminhada por longos corredores; a subida por intermináveis rampas; o último encontro com a esposa (ela também internada ali); as últimas palavras à amada [“Juracy, agora vou ficar aqui também, pertinho de você, viu?...”]; as paradas para descansar e acertar a respiração cada vez mais difícil; a chegada ao seu quarto no terceiro pavimento; o repouso no leito da enfermaria; uma dispneia respiratória; a descida para a UTI; o fim na UTI.
No dia 13 de abril, três dias depois daquele nosso último encontro, papai estava sendo velado. Aquele homem, que eu supunha imortal e com quem sempre pude contar nas horas mais atribuladas, estava agora inerte, com as mãos sobre o peito, entrelaçadas e frias, e os olhos para sempre cerrados. No entanto, a indefinível expressão de serenidade de meu pai atestava seu dever heroicamente cumprido ao término de uma longa jornada.
FILIPE
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