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A TRAVESSIA

por feldades, em 22.01.16

“Eu e Juracy já estamos na reta final. Digo isso por causa dessas nossas enfermidades. O que acontece com o compadre Tonico está para acontecer comigo também. Por isso, quero entregar a minha vida e a vida da Juracy nas mãos de Deus.”

 

Essa prece pungente, mas bela, papai fez durante as Laudes do Freizinho, da qual participamos. “Entregar a vida nas mãos de Deus” chega a ser imperioso mandamento. Refleti bastante sobre aquelas palavras e tento rascunhar algo nesta madrugada, enquanto tomo meu mate, sob a trêmula chama de uma lamparina. Ao lado, o “O Irmão Alemão”, de Chico Buarque, me aguarda sonolento. Sobre o livro, descansa uma pena de seriema, que encontrei lá pelos lados do Rancho das Martins. A pena de cor cinza em diagonal sobre a capa vermelha do livro compõe uma linda figura. Por um momento, penso ter Chico usado pena e tinteiro para escrevê-lo. Mas chega de divagações! Ao trabalho, portanto.

 

Durante esta curta estada por aqui, quantos momentos sublimemente vividos! O comovente encontro na rodoviária de VRB com o Sacramentino e o Freizinho, quando foram me buscar; na chegada, o abraço do pai e o ‘Deus-te-abençoe’ desconfiado da mãe – sem saber ao certo se este é filho, irmão, amigo ou “penetra”; o abraço da ‘irmã do meio’, que por um mês assumiu os trabalhos na casa paterna; o abraço da ‘irmã mais velha’, a vigilante guardiã dos ‘velhinhos’; o abraço forte do Mano Véio, com seus peculiares ‘tapas nas costas’; o abraço da ‘irmã mais nova’, que nos recebeu com um lauto banquete, servindo o mineiríssimo galo com macarrão; o abraço do irmão caçula, com seus questionamentos e provocações; o abraço do Irmãozinho, sempre amável e solícito; as animadas conversas, brincadeiras, chacotas e cantorias; as canções da mamãe, agora entoadas pelo trio feminino da irmandade; o magnífico dueto formado pelo Sacramentino mais a ‘irmã do meio’; a homenagem ao Luizinho Cristiano, quando duas de suas composições foram gravadas pelos ‘Moura Lima’; o baile dado nos radiologistas pela mamãe, quando tentaram, sem sucesso, submetê-la a uma ressonância magnética; os deliciosos doces feitos pelo Freizinho: um mingau de milho verde (sem doce) e um doce de manga (muito doce); a abençoada e incessante chuvinha, que me fez companhia.

 

Tudo isso passou ligeiro. Uma semana de encontros e todos já se despediram, e eu também já alço voo. “Como será daqui a dez anos, mano?...”, perguntou-me um preocupado Freizinho sem querer resposta. Ainda assim, arrisquei dizendo que talvez o grupo se desfaça. Provavelmente eu nem mais esteja ou compareça. É triste. Alegres são os momentos ora vividos, que devem ser intensamente contemplados.

 

Nos “umbrais da eternidade”, encontra-se o amigo de meu pai – fomos visitá-lo em seu leito – e o destemido papai já prenuncia algo para si. Cada um de nós, certamente, há de travar a ‘batalha final’, na qual teremos como armas o ‘bem’ ou o ‘mal’ que na vida praticamos. Mas vamos trilhando nossa vereda, ainda que pedregosa. Tal como a bruxuleante chama desta lamparina, que vai iluminando e resistindo ao vento, aos besouros, vergando-se, mas aprumando-se novamente, vamos seguindo até que amanheça e a travessia aconteça.

 

FILIPE

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4 comentários

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jose lopes a 22.01.2016

Como Felipe descende da família Moura, carrega no seu DNA a saga interessante de reproduzir com maestria: coisas, aspectos, conhecimentos e tudo mais que é manifesto em sua vida.
Nesse Blog, ele descreveu tudo que ele presenciou no diário da família Moura Lima. Assim ele contou: timtim por timtim tudo que aconteceu e passou, com muita fidelidade,tudo que ele testemunhou e ouviu de nossas bocas.
Digo aos leitores de todos Blogs do Felipe, que por amigo da verdade, ele só escreve fatos reais.
José Lopes de Lima
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Everton Souza a 22.01.2016

Pois é, talvez seja por isso, José Lopes, que eu curto muito ler as crônicas dele. Há sempre algo de inusitado.
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Everton Souza a 22.01.2016

Estamos de passagem aqui nesse mundo, creio eu. E o que realmente vale a pena são os momentos que passamos com os nossos que amamos. Não precisa ser nada de grande, basta que seja um simples momento, mas que esse momento seja vivido com amor e intensidade. Se conseguirmos fazer dos pequenos momentos da vida algo prazeroso ao nosso paladar, tenho certeza que essa travessia será muito gostosa, um prelúdio daquilo que um dia verdadeiramente viveremos.
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Aureliano a 23.01.2016

Mano querido,
cada qual com seus dons. E você, com essa capacidade e facilidade de desenhar com as letras os acontecimentos ao seu redor de maneiras a transportar o leitor para o cenário. Maravilhoso1

Pude experimentar boa parte daqueles momentos. Foi uma graça. Aliás, tem sido, pois vem se repetindo várias vezes. Parece que, com o passar do tempo, a gente vai ressignificando a vida. Embora não aconteça com todos, suspeito que está acontecendo com alguns de nós. E a gente vai relativizando fatos, perdoando ofensas, esquecendo mágoas, dando o devido valor que alguns acontecimentos merecem, deixando para trás o que faz pesar a mochila da peregrinação. É a busca daquilo que é o essencial da vida, muitas vezes "invisível aos olhos". Que está para além das aparências que fascinam a sociedade do lucro, da mentira e do consumo.

O papai já descobriu isto há muito tempo. Por isso ele diz: "Estamos nas mãos de Deus". Não por estar alquebrado pelos anos ou pela enfermidade, como alguém que não encontra mais sentido para a vida. Mas como alguém que, à luz da fé, busca transformar os atos cotidianos em sentido de vida. Então sua vida tem gostinho de eternidade. Não experimenta sensação de perda nem de fim, mas de ganho, de entrega, de conforto. Isto só se entende pelo 'mysterium fidei' (mistério da fé).

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