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A VARANDA VAZIA

por feldades, em 08.04.23

a varanda.jpg

A casa está vazia: mamãe no hospital e papai nas “Alturas”. Aqui tudo está virando um passado, que chega muito apressado.

 

Esta noite passei no quarto de minha mãe e dormi na cama que foi de meu pai. Tive uma noite tranquila, de sono sereno. Eu estava bastante cansado depois de quatro noites de insônia ou de sono precário e precisava dormir. Foi então nos aposentos paternos que tive o ‘sono bom dos bons filhos’.

 

No momento em que me ponho a “rabiscar estas mal traçadas” – aqui usando esse termo bastante puído, e brega –, uma tímida aurora afasta as últimas trevas, restando ainda uma ave noturna em tristes gorjeios. Uma corruíra já canta alegremente numa árvore ao lado da casa e lá no pasto, bem ao longe, vozes de joões-tenenéns, quero-queros, joões-de-barro e outros cantares que não consigo identificar ensaiam um promissor recital. Até um galo garboso, orgulhoso de seu harém, rasga a garganta lá pelas bandas da lagoa. O dia avança e domina.

 

Sentado à mesa de granito, sobre a qual papai carteava com as netas, enxergo um pequeno memorial do Velho. À meia-luz, posso ver fixados numa parede a bengala, um cinto, a tesoura com que ele cortava cabelo dos filhos e compadres, o aparelho de barbear e um carregador de celular. Já a mesinha onde ele punha o notebook não está mais ali, e o seu guarda-roupa migrou do quarto para cá. Dentro dele há ainda muitos de seus pertences. Na parede, à minha frente, há uma foto antiga em que papai e mamãe, ainda bem moços, celebram suas Bodas de Prata. Ela, com o caçula no colo, e ele, de mãos cruzadas – ambos olhando fixamente para a câmera.

  

Como se vê, neste Sábado de Aleluia tudo parece ser alegria. A natureza festeja após uma noite de chuva fina e intensa. Para este escriba, no entanto, o dia está cinzento. A varanda vazia da presença de meu pai e o quarto vazio da presença de minha mãe são motivos de tristeza profunda.

 

Aquele hospital, com quartos abafados e paredes frias, não me afligem. Mamãe está lá mais uma vez depois de tantas idas; um ano atrás, papai lá se hospedara por uma única vez e de lá não voltou mais. Gosto de estar naquelas enfermarias, porque ali sinto a presença de meu pai. Eu o vejo caminhando pelos intermináveis corredores e posso vê-lo subindo ou descendo as emborrachadas rampas, com suas longas mãos deslizando nos corrimões. Meu Velho está lá, e não aqui nesta varanda, que foi tanto dele.

 

Esta varanda, esta casa, este sítio e os montes que o rodeiam, e até as nuvens e o céu noturno estrelado – tudo isso, antes tão meus – estão virando uma folha de jornal que foi lida e relida. E agora, já amarelado, este “jornal” será para sempre guardado. Repouse em paz, ó passado, e não me desassossegue!

 

Os tais “escaninhos da memória”, conforme querem os pretensos poetas, serão os guardiães dessas reminiscências. Sim, porque papai já se foi, mamãe não tarda e eu já preparo minha trouxa. E, sem delongas, preciso me despedir desse outrora doce recanto, porque, como bem disse Belchior, “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

 

FILIPE   

 

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9 comentários

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De Cynthia a 09.04.2023 às 02:47

Meu amigo, nunca vi um escrever seu tão triste. E como sempre acontece, pude imaginar tudo e até sentir sua dor! Pude vivenciar toda a dor de ir perdendo quem nos deu a vida. Não é fácil. Só há uma vantagem, sabemos que teremos colo e carinho do outro lado. Mas, por favor, tire o nó de sua trouxa. Sua vida ainda é aqui. A vida te quer! Renasça amanhã também! Um pouco mais feliz!
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De feldades a 11.04.2023 às 13:59

Obrigado, Cynthia. Há de haver dias melhores para todos nós. Um abraço.
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De Rosiléia a 09.04.2023 às 04:13

Após um ano e não consigo aceitar que ele se foi. Seja qual for a hora do dia, basta eu pensar nele que já me coloco em lágrimas. O amava demais, mas não imaginava que sentiria tanto a sua falta. Falta das conversas diárias, que passaram a ser noturnas ou de madrugadinha, quando eu estava indo para o trabalho. Tenho lutos demais e não consigo trabalhar para que virem saudades. Alguns deles, me apresentam ainda, muito sofrimento. 😔
Do meu sogro é assim. Uma angústia profunda.😭
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De feldades a 11.04.2023 às 14:01

Muito interessante esta sua reflexão: "lutos devem virar saudades".
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De Andréa Aparecida Piffer a 09.04.2023 às 12:54

Texto lindo, embora triste. É triste mesmo sermos privados do convivio com quem amamos. Não importa a idade, nos sentimos órfãos, solitários e desamparados. Mas, Graças a Deus, temos esse sol que nasce todas as manhãs para nos iluminar e permitir vislumbrar uma natureza exuberante, temos filhos e familiares, companheira ou companheiro e amigos queridos como você.
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De feldades a 11.04.2023 às 14:03

É Andréa, a vida é pungentemente bela, e às vezes mais bela do que pungente. Obrigado pelo afago.
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De Aureliano a 09.04.2023 às 17:27

Só uma esperança não decepciona: a vida definitiva em Deus, já desde agora.
Lindíssimo texto, mas triste memória!
Só nos resta esperar!
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De feldades a 11.04.2023 às 14:06

Quando pensamos que tudo acabou, descobrimos que ainda nos resta a fé.
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De Sandra a 23.04.2023 às 22:33

Só tenho a agradecer esta sua partilha, toca-me a alma e o coração! Um grande abraço! Semana tranquila na medida do possível!

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