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MARIAZINHA

por feldades, em 06.01.17

“Felipe, a Maria do Antônio Moisés faleceu”. Assim meu pai escreveu em minha página do ‘feice’, mas poucas pessoas sabem de quem se trata.

 

A Maria do Antônio Moisés, que antes tínhamos por ‘Mariazinha’, mudara-se com a família no início dos anos setenta para uma casinha próxima de nós, na zona rural de Guiricema. Era uma mocinha de uns vinte anos e tinha três irmãos: João, com três ou quatro anos; o Zé, meu companheiro de infância e de traquinagens; e Teresa, sua inseparável companheira. O pai era o Antônio Procópio, conhecido por Antônio Moisés – a quem os íntimos chamavam de Antônio Cabrito – e sua mãe era a dona Fiinha, cujo nome de batismo eu nunca soube.

 

Mariazinha, filha primogênita de humildes camponeses, não desfrutou da infância nem da mocidade. Devido às circunstâncias desfavoráveis em que foi criada, não frequentou escola, dedicando-se desde cedo ao penoso trabalho na lavoura onde roçava, plantava, capinava etc. Assim, em terras alheias que a família arrendava, cultivava arroz, feijão, milho, batata, abóbora e ainda cuidava de uma horta. Descalça, trabalhava com sol, chuva, espinhos, ‘formiga-lava-pés’ e outras “belezuras”, que somente o lavrador conhece.  

 

Mulher de poucas palavras, Mariazinha era observadora e interrogativa, esboçando sempre um sorriso meio desconfiado. Durante a minha meninice, via nela uma autoridade de tia. Por isso, nas vezes em que ralhava com o irmão, uns fiapos daquela bronca eu achava que era para mim.

 

Com Mariazinha, fui padrinho de minha irmã caçula e ela tornou-se comadre de meu pai, reforçando nossos laços de amizade. Naquela oportunidade, também fomos padrinhos do João, seu irmão caçula e me tornei compadre de seus pais. Achava estranho, eu, ainda moleque, sendo solenemente chamado de “compadre Filipe” pelo seu Antônio Moisés e dona Fiinha...

 

Ultimamente adquiri o hábito visitar a Teresa, mas nunca fui à casa da Mariazinha. Teresa, mais prosa do que a irmã, gosta de escarafunchar fatos de minha infância, as belas histórias do tempo da roça, recordando algo pitoresco que já esqueci.

 

Da última vez, Teresa contou: “Cê lembra da leitoa, que você levava dentro de um saco e nós pedimos pra você mostrar?  Você abriu o saco e a leitoa escapou, afundando no brejo... Aí você disse: ‘Bom, vocês pediram para ver a leitoa e eu mostrei. Agora me ajudem a pegar a leitoa!’ Foi um corre-corre danado, custou, mas conseguimos pegar a danada de volta!...”

 

Mas a Mariazinha faleceu repentinamente, conforme escreveu meu pai. Tinha sessenta e seis anos e uma vida tranquila ao lado do esposo. Estava aposentada, morava na cidadezinha e gozava do conforto urbano, algo que jamais sonhara durante sua vida camponesa.

 

O ‘caso da leitoa’ é apenas uma de muitas histórias. Outras poderão ser contadas pela Teresa, mas não pela Mariazinha, que deixou uma grande lacuna na memória de minha família. Com ela, foi-se um arquivo que jamais poderemos abrir.

 

FILIPE

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6 comentários

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De aureliano a 06.01.2017 às 09:00

Filipe, simplesmente genial. Para quem conheceu a Maria, ou Mariazinha, traz diante dos olhos aquela imagem que ela estampava fortemente: brava, desconfiada, lacônica, trabalhadora. Ri sozinho do caso da leitoa. Bacana demais!
Deus dê à Maria a Luz que não se apaga e a Paz que não têm ocaso, pois foi uma mulher que viveu na fidelidade, na justiça e na verdade.
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De Lucia Bastos a 06.01.2017 às 11:54

Que bom poder relembrar essas historias pitorescas de nossa infância, e melhor ainda é ter o dom de escreve-las. Me empolguei com a historia do apadrinhamento, e relembrei que era mesmo assim nos tórnavamos compadres muito cedo, eu tambem achava estranho ser chamada assim em plena adolescencia....Muito boa sua crônica Felipe!
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De Anónimo a 06.01.2017 às 11:34

MARIAZINHA.
Conheci-a desde criança, quando seus pais oravam no lugar denominado Ponte das Tabocas, situado na antiga estrada Vilas Boas a Guiricema, próximo a Ponte das Palmeiras.
Como já sabemos, pelo Filipe, esta família, veio morar preto de nossa casa.
Vendo que as crianças estavam crescendo sem ser alfabetizadas, pedi permissão aos seus pais para ensiná-las um pouco. A tal Mariazinha, aprendeu um pouco; a Tereza, também. Tanto assim que elas chegaram a serem eleitoras com o pouco que as ensinei.
" O resto da estória, está no livro 'Lutas e Vitórias', de minha autoria.

Guiricema - MG
José Lopes de Lima.
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De Everton Souza a 06.01.2017 às 12:42

Caro amigo, mais um anjo no céu. Que ela esteja em paz com Deus.
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De Carlos Lopes a 07.01.2017 às 13:04

Existem pessoas que nascem com o dom de viver dignamente, encaram o dia a dia abraçando os deveres e obrigações naturalmente, assumindo o seu estado de vida de forma simples e honesta.
Está descansando em paz e feliz com sua homenagem.
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De frei Gabriel a 11.01.2017 às 18:28

Pude fazer, junto com o Pe. Aureliano uma rápida visita à Teresa na minha passagem por Guiricema. Ela, como nós mineiros mais antigos gostamos de dizer, é sempre prosa. Fala de um jeito gostoso de escutar. Ah como eu gostava de ver a Teresa lá em casa, conversando sobretudo com a Marta. E a Maria junto. Falavam de um jeito que pareciam estar corrigindo as pessoas. Falavam até das coisas engraçadas com um jeito sério. No inicio quando as conheci, D. Fiinha, Teresa e Maria conversando com a Mana, eu achava que estavam brigando. Demorei a entender que era o jeito delas. Não precisa nem falar que quando era pequeno tinha muito medo delas. Lembro-me (acho que tinha uns 4 anos), elas passavam quase escurecendo perto de nossa casa, pés descalços, enxada nas costas, alguma abóbora ou feixe de lenha voltando para casa, sempre com uns cachorro meio "brabos". Ver d. Fiinha acendendo o pito num tição à beira do fogão a lenha, enquanto falava com a Marta: "ïh, minina, cê num sabe" -para mim era o máximo. Quero registrar também que nasci no crepúsculo de um dia em que Papai, como relata acima, estava a lecionar na casa do Antônio Moisés, para suas queridas filhas, pessoas que na nossa infância era como se fossem da família. Lembro-me também da Teresa costurando frangos para o casamento da Marta... não conseguia entender aquilo: abrir o frango e depois querer costurar de volta!
A Maria dava um ar de seriedade, uma nobreza interior, pessoa carinhosa, que sabia ter uma postura que eu muito admirava. Fique com Deus, Maria, e reza por nós, que estamos no mesmo caminho!

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