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NATAL

por feldades, em 08.08.14

Amara dona Palmira por meses, anos talvez, mas um dia os anjos levaram-na. E por tempos, Natal acabrunhara-se, ficando sentado num banquinho e tendo por companhia apenas o cigarro. Seu luto demorava passar, até que chegou dona Maria e pôs fim àquela tristeza toda.

 

Duas mulheres distintas: a primeira, baixinha, vaidosa e já octogenária, disfarçava os anos à custa de grossas camadas de ruge e batom. Usava vistosos vestidos de cores fortes, em tons que variavam do vermelho ao alaranjado, e também brincos e colares, mais parecendo uma cigana. A segunda era de uma estética mais discreta. Somente de vez em quando punha seus esmaltes e alguma maquiagem leve. Não obstante a diferença entre as duas, Natal as amou platônica e intensamente. E o fez bem à sua maneira, cada qual no seu tempo e sem duplicidade.

 

Certa feita, Natal ficando gravemente enfermo teve que se submeter a procedimento que envolvia uma engenhoca com mangueira e agulha espetada no pulso. Ficou nervoso com aquela parafernália e tentou recusar o tratamento. Mas, para seu consolo, eis que surge uma “enfermeira” em tempo integral. Sua amada, dona Maria, instalou-se ao lado de sua cama e lá permaneceu sentadinha até que ele se curasse. Cena comovente aquela.

 

Noutros tempos, Natal teve dificuldade de visitar dona Maria, pois seus pés estavam cheios de cravos. Obstinado, era comum vê-lo em peregrinação à ala feminina. Arrastando os pés bem devagarinho, boné atolado e cigarro na boca, ia ele cheio de amor e saudade. Houve tempos em que cheguei a conduzir dona Maria, já em cadeira de rodas, até seu amado. Deixava-a com ele enquanto visitava os demais. Na despedida, trocavam um discreto beijinho.

 

Parecia ter ciúmes, principalmente de dona Palmira. Talvez isso acontecesse pelo fato de que esta fosse um pouco “atirada” para seus padrões. Já dona Maria era mais contida e não lhe despertava insegurança.

 

Nos tempos de dona Palmira, quando não era crime distribuir doces naquele asilo, eu lhe oferecia balas. Nunca aceitava, mas a namorada sempre o impelia a pegar. “Pega, Natal, e dá pra mim!” Ele, finalmente, pegava sem dizer palavra e as entregava de pronto à companheira. Por essas, eu até cheguei a não me afeiçoar com ele. Achava-o rabugento, mas com o passar do tempo vi que era simpático, proseador, bacana mesmo. Antes, ele apenas resmungava alguma palavra; depois já se ouvia um bom-dia com sonoridade; finalmente, tornou-se íntimo e palavroso.

 

Após a morte de dona Maria, Natal ficou recolhido. Muitas vezes, no meio do dia, eu o encontrei desacoroçoado, deitado na cama sob o cobertor. Ao lado, no criado-mudo, um intocado prato de comida. Sem fome, ele aceitava umas paçoquinhas que eu arriscava clandestino. Mas, com o endurecimento do “regime” e o patrulhamento da diretoria, fui acusado de distribuir doces vencidos. Não houve, portanto, mais paçoquinhas. E o Natal definhava.

 

Partiu dona Palmira, partiu dona Maria, partiu Natal, partirei eu. Tudo o que resta são recordações que se anuviam, se descoram e se apagam. Como se apagam as existências.

 

FILIPE

 

NOTA: Dona Maria já foi retratada em crônica que será reproduzida aqui em “feldades”.

 

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5 comentários

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De Eduardo a 08.08.2014 às 14:50

Linda história !!!
E boa memória!
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De Carlos Lopes a 08.08.2014 às 22:02

O círculo da vida; o ideal que nos acalenta em cada fase, Seu Natal mesmo num abrigo de idosos, encontrou dois amores, um amigo pra dar testemunho desta verdade...e o fim...o que todos nós tememos mas sem fim, não pode haver começo (ou será o contrário ?)
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De feldades a 15.08.2014 às 01:26

É Carlos, primeiro você, depois o Aureliano.
É muita inspiração.
É esse o meu propósito: despertar o pensamento, e por que não, a poesia.
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De feldades a 16.08.2014 às 12:52

Há amores e dores. Há amigos e amizades. Há palavras e canções. Há encantos e desencantos. Há alentos e sofrimentos. Há alegrias e felicidade. Há começo e fim.
Importa muito que os dissabores não eliminem os amores. Que as amizades sejam sinceras. Que as canções toquem a alma. Que se possa reencantar no caminho da vida. Que se dê sentido aos sofrimentos. Que a felicidade seja a alegria da alma. E que o recomeçar seja encantado e iluminado pela sentido de eternidade.

OBS.: Postado por Aureliano e editado a seu pedido.
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De feldades a 16.08.2014 às 12:53

Quanta poesia!
Nem sei se me atrevo a continuar escrevendo.

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