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Pulblicado originalmente no blogdofilipemoura.com em 14/12/2012
Já não se encontra embaixo desta mesa o cãozinho que aqui se aninhara por um bom tempo durante minhas longas “jornadas datilográficas”. Ele, que me acompanhava nas leituras, orações ou nas minhas solitárias e infrutíferas reflexões diárias, deixou-me com uma página em branco. Aconchegando-se sempre sobre o tapete e repousando carinhosamente a cabeça sobre os meus pés feito travesseiro, dormia. Acordando, fingia impaciência ao mordiscar meus dedos, mas também me afagava com sua morna e molhada língua. Caso eu demorasse no recinto, levantava-se e começava a latir como se dissesse que a vida é um tédio; que é preciso dar uma volta para espairecer; e que ver a rua e mexer com a “meninada” lá fora é uma necessidade premente, inadiável.
O “menino”, de pelagem cor de mel, já retratado aqui em crônica intitulada “Fim do dia com Totó”, era um “moleque” travesso. Irrequieto, corria pra lá e pra cá enquanto eu tentava alcançá-lo com a guia para o habitual passeio. Glutão, devorava sua “marmita” num piscar de olhos para aguardar, impaciente, os sobejos de sua companheira. Esta, muito elegante, comia sem pressa e indiferente à pedinchice do gorducho comilão.
Nas nossas caminhadas, enquanto eu lia um jornal, ele me conduzia puxando-me, arrastando-me, como se o “totó” fosse eu. Embora não fosse um gentleman, não fazia feio. Quando queria se aliviar, procurava sempre um matinho num terreno baldio. Metódico, tinha um ritual para isso: após alguns giros, murchavas as orelhas, e, enquanto esvaziava os tubos, olhava-me zombeteiramente como quem diz: “E aí, não vai fazer também?...”.
Mas o cãozinho parou. Já não brincava, não comia e arqueado por uma nefrite, pouco se animava com os passeios. Parecia-lhe difícil sustentar o peso da cabeça, que pendia abaixo da linha do tronco. Com as narinas espantosamente dilatadas e um olhar triste e profundo, parecia implorar por ajuda. E a ajuda veio na forma de agulhadas; esse anacronicamente cruel procedimento médico, que a todos atordoa, não lhe devolveu a saúde.
Certo dia, ao sairmos para o trabalho, ele se aproximou do portão e tentou latir. Em outros tempos, essa seria uma forma de ele dar tchau ou de dizer: “Não demora, viu? E não se esqueça do meu osso!...” Mas, dessa vez não saiu latido algum. O som emanado de suas entranhas foi uma indizível despedida. O prenúncio do fim.
O “menino” briguento e sapeca, que aterrorizava a vizinhança por onde passava, mas que cumpriu bravamente a função de sentinela e guardião da casa, fenecia. Desfalecido, envolvi-o numa flanela e o depositei no assoalho de uma fúnebre caminhoneta. O fim.
O Paraíso, que é destinado àqueles que escaparem das chamas, é concebido pelos renascentistas como um lugar repleto de nuvens e anjos. De minha parte, anseio por tal morada ao lado do Criador e daqueles querubins, pois passar a eternidade só com humanos deve ser tedioso. O Criador, com certeza, nos agraciará, também, com a companhia das outras criaturas. Esperam por mim o Lilico, Fokinha, Totó e muitos outros bichinhos. Gostaria de ver também meus porquinhos... que viraram torresmo. E eu lhes pediria desculpas. E não estou sendo herético. “O ser humano, esse gigante”, não deu abrigo à Sagrada Família; os animais acolheram-na em sua manjedoura! Temos muito o que aprender com os bichos.
FILIPE